
Poeta. Autor de Arame Falado (7Letras, 2002). Professor de Hermenêutica e Filosofia do Direito na UFF. Escreve no blog marcusfabiano.wordpress.com/
No século 19, o caráter transgressivo da homossexualidade coroava o dandismo de artistas e literatos, invocando os ares de mistério e superioridade espiritual de seletos círculos privados sobre a rusticidade intolerante da moral religiosa dos espaços públicos burgueses e aristocráticos. Foi nesse contexto que se desenrolou o drama de um Oscar Wilde, na Inglaterra, e de um Rimbaud ou de um Verlaine, na França - estes dois, os autores do famoso Sonnet du Trou du Cul ("Soneto do Olho do Cu"). Como se sabe, por sua homossexualidade, Wilde foi condenado à prisão com trabalhos forçados em 1895, sendo também proibido de legar o seu sobrenome aos filhos. Desgraça semelhante já se havia abatido sobre o poeta Paul Verlaine, que vivera um romance atribuladíssimo com o jovem Arthur Rimbaud. Em razão disso, Verlaine fora condenado por sodomia, na Bélgica, em 1871, permanecendo encarcerado até 1875.
Mário de Andrade é o homenageado da programação 2015 da Flip
Mário de Andrade, nascido em 1893, embora um visionário do século 20, é, em muitos sentidos, ainda um homem do século 19 em que se passaram os dramas acima narrados. E, penso eu, não convém agora cometer-se a anacronia de se imaginar que o sigilo ao redor da sua sexualidade fosse apenas uma mixaria irrelevante da sua vida privada. Se hoje, sobretudo depois da aids, a liberalidade dos costumes normaliza-se à custa de escândalos e brados pela criminalização da homofobia, a coisa era completamente distinta no contexto de um modernismo com os olhos voltados para as afoitezas do cosmopolitismo de Paris e os pés bem fincados em uma cultura ibérica de matriz católica e conservadora.
Sem sombra de dúvidas, a interpretação da homossexualidade de Mário por ele próprio ocorria à luz do dandismo que lhe fornecia inspiração e critérios que ultrapassam em muito suas preferências sexuais, instalando-se no âmbito geral de um gosto sofisticado que ele sempre procurou manifestar e até encarnar com sua habitual e cultivadíssima elegância. Mário era um esteta completo, uma obra viva na ética de um artista total. Todavia, em sua época, como disse meu amigo Eder Fernandes, simplesmente ainda não havia como questão posta uma "identidade gay" a ser publicamente assumida. Oswald de Andrade, sacaneando Mário, teria certa vez dito que ele "parecia com Oscar Wilde por detrás". Era o nível da coisa.
Mário, que morreu em 1945, sempre preferiu a discrição, pois sabia que na realidade enfrentava o convívio com um grupo modernista altamente conservador em matéria de costumes. Tão conservador que assim continuaria inclusive na sua geração posterior de herdeiros diretos. A identidade pública do homossexual oscilava então entre a doença e a atmosfera soturna dos criminosos. Sem me alongar muito a esse respeito, darei apenas um exemplo bem simples do que estou procurando dizer. Eis uma declaração de Carlos Drummond de Andrade à pesquisadora Maria Lúcia do Pazo, concedida praticamente quatro décadas após a morte de Mário de Andrade, em 1984:
"Devo dizer que o homossexualismo sempre me causou certa repugnância, que se traduz pelo mal-estar. Nunca me senti à vontade diante de um homossexual. Com o tempo, havendo agora uma abertura imensa com relação ao desvio da homossexualidade, o homossexual não só ficou sendo uma pessoa com autorização para ir e vir como tal, mas chega a ponto de isto ser exaltado como riqueza de experiência, como acrescentamento da experiência masculina."
À luz da mesma admoestação contra o anacronismo, julgo que tampouco seria admissível reprovar Drummond por manter a opinião que na oportunidade exarou, em tudo consentânea com a percepção moral hegemônica. Contudo, já na era dos mercados identitários, quando até empresas (!) alavancam campanhas sobre as chamadas questões de gênero, interessante lembrar, em perspectiva, que a homossexualidade já representou, no seu passado recente, um alto exercício da liberdade privada capaz de afrontar o conservadorismo reinante nos costumes ao mesmo tempo em que reclamava altas distinções éticas, estéticas e intelectuais.
O tema da revelação da carta de Mário para Bandeira é complexo, pois envolve os limites de subsistência da vontade de duas pessoas ausentes a respeito de cenários que não puderam vislumbrar. E isso sempre foi, para o Direito e para a História, tema delicadíssimo. Se Manuel Bandeira tivesse destruído a carta que lhe foi confiada sob a exigência do perpétuo sigilo, essa discussão simplesmente não estaria ocorrendo. Mas como na história conjectural a hipotetização dos cenários sempre cede à ventura irreversível dos fatos consumados, eis-nos aqui, celebrando, com certo alívio, a comprovação biográfica de um dado que certamente não pode ser desconsiderado na assim chamada erotologia de Mário de Andrade.
Como arquiteto e engenheiro cultural, Mário foi um gênio da nossa alma, um demiurgo incontornável dessa esfinge que nos consome: a questão nacional da brasilidade. Pessoalmente, acho a sua poesia medíocre e cansativa, e tampouco gosto de Macunaíma. Nunca aceitei essa exigência de ser moderno, que hoje mais significa alinhar-se a um certo modernismo institucionalizado graças aos seus epígonos como cultura oficial capaz de se sobrepor a outros modernos que ainda precisam ser mais fundamente estudados. Não consigo admitir que o novo seja, por si, melhor que o antigo. Prefiro então celebrar em Mário e no seu modernismo - ou melhor dizendo: nos seus modernismos - a irreverência e a iconoclastia sublimadas pela ambiguidade. E em nome desta ambiguidade, recordo aquele que talvez seja o único poema de Drummond sobre o amor homossexual, publicado no ano de 1945, em Claro Enigma:
RAPTO
Se uma águia fende os ares e arrebata
esse que é forma pura e que é suspiro
de terrenas delícias combinadas;
e se essa forma pura, degradando-se,
mais perfeita se eleva, pois atinge
a tortura do embate, no arremate
de uma exaustão suavíssima, tributo
com que se paga o voo mais cortante;
se, por amor de uma ave, ei-la recusa
o pasto natural aberto aos homens,
e pela via hermética e defesa
vai demandando o cândido alimento
que a alma faminta implora até o extremo;
se esses raptos terríveis se repetem
já nos campos e já pelas noturnas
portas de pérola dúbia das boates;
e se há no beijo estéril um soluço
esquivo e refolhado, cinza em núpcias,
e tudo é triste sob o céu flamante
(que o pecado cristão, ora jungido
ao mistério pagão, mais o alanceia),
baixemos nossos olhos ao desígnio
da natureza ambígua e reticente:
ela tece, dobrando-lhe o amargor,
outra forma de amar no acerbo amor.