Chega-se a Vallegrande por uma estrada pouco frequentada mas que não deixa de levantar poeira à passagem de qualquer veículo. Foi nesta cidade da Bolívia que, há 48 anos, o guerrilheiro argentino Ernesto "Che" Guevara foi capturado e morto por integrantes do exército boliviano. Marcada inadvertidademente na história, a população da cidade de pouco mais de 10 mil habitantes, que vive basicamente da agricultura familiar, transformou sua comunidade em um misto de museu e santuário para o personagem mais famoso a pisar no lugar. Nesta região do interior boliviano, Che Guevara ainda vive.
Foi em La Higuera, distante cerca de 60 quilômetros de Vallegrande, que, no dia 8 de outubro de 1967, o guerrilheiro argentino foi capturado. Um dos mentores da Revolução Cubana, Guevara havia instalado em La Higuera uma base para suas ações na América do Sul. A ideia, segundo relatos da época, era chegar até a Argentina. Além dos que vieram de Cuba com Guevara, a guerrilha também recrutou moradores da região de La Higuera. Isolado no meio da selva, o povoado era o local perfeito para os treinamentos.
Quando Guevara apareceu em La Higuera, era um desconhecido da maior parte da população. Mas não do Exército, que instalou em Vallegrande uma base para sua captura. A emboscada aconteceu na entrada do vilarejo, em uma ribanceira que virou ponto de peregrinação de turistas. Foi atrás de uma pedra que Che tentou se proteger dos tiros. Levou dois, foi levado a pé os cerca de dois quilômetros até a escolinha de La Higuera. Che passou a noite na escola com dois tiros no corpo e, na manhã do dia 9 de outubro, morreu após ser alvejado com novos disparos executados pelo Tenente Mário Terán. Hoje, essa escolinha se tornou ponto de idolatria.
La Higuera respira Che Guevara. Uma estátua do guerrilheiro está na entrada do povoado. Um busto, que reproduz uma das fotos mais famosas do guerrilheiro se destaca em cima de uma pedra na solidão dolorosa do vilarejo. O museu, instalado onde era a escola que o guerrilheiro foi executado, não tem nenhum objeto original pertencente a Che. Mas as paredes quase não têm mais espaço para dedicatórias, fotos e lembranças deixadas pelos fãs do guerrilheiro.
Ao preço de 10 bolivianos (cerca de R$ 4), pode-se entrar no local, que é cuidado pelos moradores do vilarejo. Eles mantêm o mesmo chão de terra de quando Che foi morto. Todos os mais idosos que ainda vivem em La Higuera dizem ter conhecido o guerrilheiro. Relatos não faltam.
- Eu me lembro do Che. Sempre vivi aqui. Conheci ele. Eu tinha 20 anos quando ele morreu - conta Irma Rosato, uma moradora que aborda os turistas com postais de Guevara nas mãos, que ela jura serem fotos originais da época. Por eles, ela pede a quantia de dez bolivianos cada. Amassados e amarelados, revelam a dificuldade que a idosa tem em vendê-los.
Os relatos de convivência com os moradores da região também constam no diário de Che, que foi levado com os militares para Vallegrande, e hoje está guardado no Banco Nacional da Bolívia. Hoje, pouco mais de 20 pessoas ainda sobrevivem em La Higuera, praticamente sem estrutura alguma. Luz é rara e não há mercados. Duas pousadas instaladas por franceses na entrada do vilarejo são opções para os turistas que querem ficar no local. Mas são raros os que ficam. Desde que o corpo de Che partiu no dia 9 de outubro de 1967 com direção a Vallegrande, amarrado ao trem de pouso do helicóptero do exército que pousou no pátio do hospital Señor de Malta, La Higuera mergulhou novamente no esquecimento, e vive basicamente de lembranças da história do guerrilheiro.
Em Vallegrande, apenas se soube da existência de Che Guevara no momento que o helicóptero trazendo o corpo pousou no pátio do hospital. Às 10h daquela manhã ensolarada, a enfermeira Susana Robles recebeu do Exército a missão que iria carimbar seu nome em um dos capítulos mais importantes da história. Susana, um médico e outra enfermeira foram convocados para lavar o corpo do guerrilheiro. Passados quase 48 anos da morte de Che, Susana é a única pessoa ainda viva que presenciou aquele episódio.
- Tiramos toda sua roupa e em seguida as lavamos. As roupas estavam completamente sujas. Ele vestia uma calça, um calçado de cor creme e sua barba era grande, os olhos abertos. Por nada fechavam. Estavam abertos. Nós íamos para um lado, e ele nos seguia com os olhos. Íamos para outro, e ele seguia olhando. Onde estávamos, olhávamos ele. Em toda lavanderia - contou a enfermeira, em uma entrevista concedida em sua casa, em Vallegrande.
O corpo de Che Guevara foi limpo na lavanderia do hospital Señor de Malta, em um local preservado até hoje como ponto de peregrinação para os turistas. Susana foi a responsável por injetar formol no pescoço de Che, a fim de evitar a acelerada decomposição do corpo.
- Foram dois litros de formol, para que não danificasse seu corpo. Não fosse isso, em três dias, estaria com cheiro de morto - recorda.
A barba robusta do Che foi mantida, mas ainda na tarde daquele dia 9 de outubro, seria cortada pelos militares. Che morreu em Vallegrande, e a cidade que era até então desconhecida, passou a ter uma identidade, um reconhecimento.
- É claro que se não fosse por tudo que aconteceu aqui, pela chegada e morte do Che, não teríamos toda essa procura. Aproveitamos o que aconteceu em 1967 até hoje - conta Beiser Luis Rueda, diretor da Casa Municipal de Cultura de Vallegrande.
Pouco mais de dois mil turistas visitam Vallegrande e La Higuera por ano, especialmente argentinos e cubanos, os "mais identificados com os ideais do guerrilheiro", na análise de Rueda. O turismo na região ainda é fraco devido à pouca estrutura oferecida. A chegada a Vallegrande não é simples. Saindo de Santa Cruz de la Sierra, são 260 quilômetros percorridos em mais de cinco horas de viagem. As estradas que contornam as montanhas possuem tantos buracos que é inviável andar a uma velocidade superior a 50 quilômetros por hora. De Santa Cruz, a viagem pode custar US$ 400 por uma agência de viagens ou 60 bolivianos (R$ 26) por transporte público. Ao chegar a Vallegrande, há pousadas a preços médios de 100 bolivianos (R$ 44) à noite (com chuveiro quente e sem café da manhã incluído). Cartão de crédito não é aceito por lá. A carne é escassa, devido às novas taxações impostas pelo governo do presidente Evo Morales, e a única cerveja encontrada é produzida pela cervejaria boliviana nacional.
A proposta do governo boliviano, segundo Rueda, é firmar parcerias com os governos de Cuba e da Argentina para melhorar as estradas e difundir a Ruta Del Che para o mundo. Treinamento de guias turísticos e fortalecimento do Museu do Che, em La Higuera, estão entre os planos, mas ainda não há prazo para a implementação. As placas que identificam a "Ruta del Che" são as únicas marcações turísticas até o momento, e demoraram quase 15 anos para serem instaladas. Por enquanto, os únicos itens originais que pertenceram a Che Guevara, e que estão disponíveis aos turistas em Vallegrande, são as sandálias e a bolsa que ele usava quando foi capturado pelo exército. O Museu, localizado dentro da Casa de Cultura, na praça central de Vallegrande, passa quase que despercebido pelos turistas. Só é aberto quando é feito o pedido.
- Queremos muito que a Ruta Del Che seja reforçada. A história precisa ser preservada - afirma o diretor da Casa de Cultura, que é do partido de oposição a Morales, mas defende o presidente: - O Che pensava parecido com o presidente Morales. Os dois lutam pelas melhorias do povo.
Melhorar as estradas que levam até La Higuera é um dos principais objetivos do plano do governo. O trajeto é a alegria dos taxistas, que cobram entre 250 a 300 bolivianos (entre R$ 111 e R$ 156) para percorrer os 60 quilômetros até La Higuera. Não há outra forma de chegar. Juan Carlos Melindres, 38 anos, garante a renda de quase um mês de trabalho com uma viagem para lá. No Toyota 1998, automático e montado na Bolívia (carros americanos não entram no país), o taxista garante que não mente para os turistas.
- O que eu sei da história, falo. Se não sei, fico quieto. E só levo os turistas onde eles querem conhecer - diz Melindres, que faz em pouco mais de duas horas o roteiro até La Higuera.
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O passeio termina na lavanderia do hospital Señor de Malta, onde o corpo de Che foi lavado para depois ser exposto para a imprensa. Ali, a sensação é de que o tempo parou. Os lençóis pendurados no varal em nada lembram as regras de higienização tão exigidas em estabelecimentos médicos. No pátio, pacientes caminham segurando soro enquanto turistas entram nos espaços preservados onde Che esteve. A lavanderia ganhou pinturas ao longo dos anos que mais parecem pichações. De tanto ser "marcada" pelos turistas, foi cercada e gradeada. O mesmo não aconteceu com a espécie de capela onde o corpo de Che foi exposto. Aberta e sem cuidado algum, o local se deteriora a cada dia mais. Velas são acesas em cima da espécie de mausoléu onde Che foi exposto. Nas paredes, muitos recados para o guerrilheiro.
Para os turistas que vão até o local para homenagear o ídolo, o Che ainda vive.
* Especial, ZH La Higuera, Bolívia