*Roberto Romano é professor titular de Ética e Filosofia Política da Unicamp. Escreve quinzenalmente.
O Estupro das Massas pela Propaganda Política é livro a ser lido por quem deseja entender a situação política. Serge Tchakhotine, em 1939, estudou o sistema nazista e ideou métodos eficazes para vencê-lo. Integrante da Social Democracia alemã, ele viu seu partido perder para Hitler por cegueira burocrática, arrogância de intelectuais e dirigentes oligárquicos. Os social-democratas não imaginaram ser preciso inovar formas comunicativas nas eleições. Mas Goebbels, baseado em leituras de Platão, da sofística e do marketing norte-americano, moveu estercos da alma massificada, mentiras urdidas na consciência racista.
O autor se exilou na França, onde havia um governo de esquerda. Para ali publicar seu livro, ele sofreu censura dos dirigentes franceses que "não queriam desagradar Hitler". Existe edição em nossa língua do livro, publicada pela Civilização Brasileira. O texto foi traduzido por Miguel Arraes, governador deposto em 1964. O título nacional denuncia a mão de ferro ditatorial: A Mistificação das Massas pela Propaganda Política. De estupro para mistificação, o leitor nota, temos outro estupro.
Com base behaviorista (numa leitura acurada e inteligente), Tchakhotine disseca a propaganda, os seus métodos usados na vida antiga e na modernidade. Os aportes teóricos não se limitam a Pavlov. Em páginas agudas ele analisa os contributos da cibernética (em 1939 .) de Wiener a seus pares. Dados da psicanálise entram no texto para explorar os lodaçais humanos onde se movem as litanias tirânicas.
As conclusões do autor desalentam. De cem pessoas submetidas à intensa e perene propaganda, apenas 10 poderiam resistir ao estupro emocional. Na época, os meios eram o rádio, a TV (em pequena escala, mas já usada pelos nazistas e por seus inimigos), os jornais, os cartazes, as manifestações de massas, os discursos. Estávamos longe dos Facebooks, Twitters etc. O estelionato das urnas brasileiras, hoje sentido mesmo no PT (que ameaça se afastar de Rousseff) teve responsáveis. O maior é o marketing político.
Passo a outro ponto do texto citado. Como fruto da propaganda virulenta, a tirania e o controle de indivíduos frágeis se tornou uma praga social. Seitas exercem o papel de espiãs, polícias, promotoras, juízas, carrascas. Na internet, tal delírio chega ao paroxismo. O costume de punir pessoas diretamente, matar seu corpo ou moral, mostra a natureza tigresca do ser humano, justifica e piora a tese de Hobbes. Energúmenos ignoram respeito, civilidade, normas.
O ex-ministro da Fazenda, Mantega, foi há pouco hostilizado num restaurante paulista. Ele já recebera insultos em ambiente hospitalar de São Paulo. Alexandre Padilha, ex-ministro da saúde, teve seu quinhão de apupos também num restaurante. Grupos imaginam ter o direito de punir sem apelo pessoas de quem condenam a postura política, ideológica, religiosa. Em vez de indicar democracia, semelhante prática mostra o plano baixo do fanatismo. Atenção: o uso tem longa data. Quando a mãe de Fernando Collor (de quem fui crítico feroz do início ao fim de governo) estava hospitalizada à beira da morte, petistas e tucanos foram ao hospital berrar impropérios. Eles não se incomodaram com o fato de a genitora não poder pagar, menos ainda os demais doentes, pelos malfeitos do presidente. Tempos depois, Mario Covas - a quem muitos petistas e tucanos devem a vida por sua resistência à ditadura - foi apedrejado por petistas quando estava à morte, na Praça da República paulista. Dei só dois exemplos. Eles são muitos. "Duas coisas a burguesia nos legou, e delas não podemos abrir mão: bom gosto e boas maneiras" (Lênin). O autor do ditado não o seguiu, o que não infirma sua verdade. Que tal uma guinada rumo aos bons modos e boas maneiras? Ou, quem sabe, rumo à democracia sem baixos ataques pessoais e com debate teórico e prático? Caso contrário, sobra o fascismo caboclo, de esquerda ou direita, para a desgraça do nosso país.
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