José Maria Marin, na época deputado estadual pela Arena, pediu um aparte ao microfone da Assembleia Legislativa de São Paulo em 9 de outubro de 1975. Exigia uma atitude do governo em relação à "infiltração do comunismo" na TV Cultura:
- Não pode continuar essa omissão, tanto por parte do senhor secretário da Cultura como do senhor governador. É preciso mais do que nunca uma providência, a fim de que a tranquilidade volte a reinar.
O diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog, seria torturado e morto duas semanas depois, em uma das atrocidades mais lembradas da ditadura.
No ano em que a morte de Herzog completa quatro décadas, Marin é preso por corrupção na Fifa. E o filho do jornalista, Ivo Herzog, comemora. Guardião do nome do pai e diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog - que promove uma luta incansável em prol dos direitos humanos -, Ivo falou ao PrOA:
Como o senhor reagiu à notícia da prisão de José Maria Marin?
Com felicidade. É um bandido, uma pessoa nefasta que acreditava estar acima da lei. Sempre achei que, por ser muito bem relacionado e articulado, seria difícil qualquer coisa concreta ocorrer contra ele. Ainda é preciso aguardar o julgamento, temos que segurar a empolgação, mas essa prisão é histórica.
Sente-se vingado, de alguma forma?
Não encaro essa prisão apenas como uma punição ao que ele fez contra o futebol. Me parece uma punição ao caráter de alguém que, há muitos anos, precisava ser extirpado da sociedade. Marin foi um entusiasta da ditadura, um governador corrupto (era vice de Paulo Maluf, mas em 1982 assumiu o governo de São Paulo porque Maluf renunciou para concorrer a deputado) e um dirigente corrupto. O que ele fez com o meu pai está dentro do contexto de atuação de um mau-caráter.
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O senhor coordena projetos que promovem direitos humanos. É um tema ainda pouco compreendido no Brasil?
Já foi bem pior. Em 2009, quando criamos o instituto, até evitamos usar o termo "direitos humanos" no texto que apresentava a nossa missão. Havia no imaginário popular essa compreensão de que direitos humanos eram direitos de bandidos, o que é um equívoco. Então, passamos a usar o bordão "direito à vida, direito à justiça". Nossa luta é para que a sociedade compreenda que esse é um assunto de absoluta relevância para todas as pessoas, sem exceção.
Vladimir Herzog em foto reproduzida no documentário "Vlado - 30 anos depois", de João Batista de Andrade
Foto: Oeste Filmes
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Por que para todas as pessoas?
Uma pesquisa da ONU mostrou uma redução expressiva na violência urbana em países que adotaram a educação em direitos humanos. Foi o caso do Chile. Portanto, a melhor maneira de fomentar essa consciência é nas escolas. O nosso projeto Respeitar É Preciso, em parceria com a prefeitura de São Paulo, reúne 10 mil alunos e 500 educadores para debater na pré-escola e no Ensino Fundamental temas relacionados aos direitos humanos dentro da realidade deles. Antes de o projeto começar, entrevistamos estudantes, pais, professores e funcionários para entender essa realidade.
E que realidade encontraram?
Por exemplo, a mãe de um aluno que dizia para a mãe de uma aluna: "O meu filho é macho, vai pegar as meninas mesmo, então é melhor você cuidar da sua filha, viu?". Como se uma menina, para não ser agarrada, precisasse ser protegida. É uma total ausência de noção sobre direitos humanos. Se essa cultura machista é debatida e contestada na escola, quando as crianças estão formando os seus valores, é natural que tenhamos uma sociedade mais respeitosa, mais humana e menos violenta. E acredite: os alunos levam esse debate da escola para casa, ajudando na reeducação dos próprios pais.
O senhor já pensou em se candidatar a cargo público?
Com frequência me perguntam isso. Mas vou me candidatar por qual partido? Havia duas siglas com as quais eu simpatizava. A primeira, o PSDB, colocou na Comissão de Direitos Humanos (da Assembleia Legislativa de São Paulo) um deputado chamado Coronel Telhada, que se orgulha do número de pessoas que matou como policial. Já o PT tem Paulo Maluf como aliado estratégico, além de outros líderes da ditadura sempre por perto. Ora, eu tenho um nome a zelar. Não é nem o meu nome, é o nome do meu pai, mas jamais poderia emprestá-lo para essa gente.
Qual é o peso desse nome?
Muitas e muitas vezes, não gostaria de ter esse nome. Queria ser uma pessoa como qualquer outra, que trilha o seu caminho de maneira independente. Eu queria ser eu, e não o filho de Vladimir Herzog. Esse nome me impôs desde criança uma agenda muito intensa, e nem sempre quero carregar nos ombros esse peso que me acompanha desde menino. Primeiro, porque eu queria ter o meu pai. Queria que ele estivesse vivo, comigo. Segundo, porque gostaria de viver mais para mim mesmo, não para esse nome. Mas é a minha realidade, não vou fugir dela.
Nunca pensou em deixar o instituto?
Se eu deixá-lo, ele deixa de existir. O programa de direitos humanos nas escolas, por exemplo, se o instituto não fizer, ninguém vai fazer. Na semana passada, organizamos o 1º Seminário Internacional Cultura da Violência contra as Mulheres, trouxemos palestrantes de vários países, foi um evento fantástico, nunca houve nada parecido em importância e qualidade. Se eu sair do instituto, não haverá segunda edição. É um beco sem saída: não tenho mais escapatória, meu pai deixou nas minhas mãos um ótimo poder de articulação, e preciso lutar por essa causa até as últimas consequências.
Pode dar um exemplo desse poder de articulação?
Agora mesmo, pouco antes de lhe dar esta entrevista, o maestro João Carlos Martins me telefonou. Estávamos conversando sobre colocar Dilma Rousseff e Fernando Henrique Cardoso sentados juntos, lado a lado, em um concerto em homenagem ao meu pai na Sala São Paulo, em 15 de agosto. O Instituto Vladimir Herzog, com esse nome, tem muita força para realizar as coisas. Claro, às vezes me frustro porque, para cada "sim", ouço uns 20 "não". Afinal, bato na porta das empresas para pedir dinheiro para projetos de direitos humanos, e não para fazer uma exposição de Picasso.
O que o senhor pensa de quem vai à rua pedir intervenção militar e o retorno da ditadura?
Acho ótimo que peçam, têm o direito de pedir o que quiserem. A maior riqueza de uma democracia é o respeito à diversidade e à divergência de opiniões. Essas pessoas inclusive estimularam um retorno da reflexão sobre o que é uma ditadura, sobre as atrocidades que o regime militar cometeu no Brasil. E é bom que esse debate volte à tona de tempos em tempos, para que o assunto nunca seja esquecido.
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