*Cristina Bonorino é Professora Titular de Imunologia da PUCRS e Pesquisadora 1C do CNPq. Escreve mensalmente.
Herdei de meu pai e de minha mãe a cor dos meus olhos, mistura dos genes dos dois. Isso a gente chama de transferência genética vertical, DNA que passa dos ancestrais aos descendentes. Mas aposto que poucos sabem da transferência genética horizontal - em que material genético pode passar de um ser de uma espécie para outro de espécie diferente. Um exemplo comum são genes de resistência a antibióticos que nós humanos podemos trocar com bactérias que nos infectam ou, ainda, genes de resposta imune que os vírus podem "roubar" da gente. Sim, somos infectados por vírus que muitas vezes passam entre nós, mosquitos, porcos, galinhas, ocasionalmente levando genes de um organismo para outro! Por isso ensino meio brincando aos meus alunos que somos transgênicos naturais.
Mas só meio brincando. Porque é verdade. Para confeccionar os primeiros organismos transgênicos, antes tivemos que entender como os vírus fazem essa transferência, e depois copiamos isso, com uma tecnologia que chamamos de biologia molecular ou biotecnologia. Nada de novo, imitamos mesmo. E, ao entender como funciona, não nos sentimos ameaçados por essa tecnologia usada hoje para modificar inclusive alimentos. Por que não usá-la para deixar uma fruta mais doce ou um grão mais nutritivo? Claro que os efeitos são continuamente estudados. Por exemplo, transgenia para conferir resistência a pragas. Pode um inseto polinizador transferir esse material genético para outras espécies de plantas? Sim, porque o mesmo inseto faz isso com os genes da planta há centenas de milhares de anos. E foi assim que a planta coevoluiu com seu polinizador.
No mês passado, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei do deputado Luiz Heinze (PP/ RS) que modifica o rótulo dos alimentos que possuem transgênicos em sua composição. Atualmente existe um símbolo, um triângulo amarelo com um "T", que indica presença de produtos geneticamente modificados. O projeto prevê que o símbolo seja substituído pela informação escrita na embalagem - mas não especifica o tamanho da letra. O argumento é de que o símbolo usado indica perigo, ao invés de informar. A verdade é que poucas pessoas já viram ou notaram esse símbolo - e muitas das que viram, não sabem o que significa. As pessoas que apoiam esse projeto de lei não parecem preocupadas em realmente esclarecer as pessoas sobre o assunto - ao contrário, parecem querer esconder a informação da transgenia.
Não é impossível usar tecnologia, ter lucro e ao mesmo tempo educar as pessoas. Temos o direito de saber - e escolher - se o que comemos é ou não transgênico. A transgenia é hoje componente importante de um gigantesco mercado econômico. Por que não estamos investindo em esclarecer sobre essa tecnologia para que nossos gestores façam escolhas que regulamentem o seu uso a nosso favor? Varrer a informação para baixo do tapete é não apenas um desserviço ao consumidor, mas um tiro no pé para os produtores brasileiros. Os mercados europeus têm regras claras para o uso de produtos transgênicos, e o fato de não apresentarmos claramente nossos produtos neste aspecto transpira falta de seriedade.
Qualquer tecnologia - genética, nuclear, farmacológica - pode ser utilizada para melhorar ou piorar a vida humana. Contudo, apenas ao entendermos profundamente como ela funciona poderemos criar mecanismos que garantam que será empregada para gerar o máximo de benefícios e o mínimo de danos. E portanto não importa se alguém acredita que transgenia faz mal, ou não faz mal nenhum - importa estudar e controlar o seu uso, como dever ser feito com medicamentos e energia nuclear.
Recentemente, aprendemos a usar um sistema genético das bactérias que expulsa o material genético dos vírus que as infectam. Em menos de cinco anos, isso levou ao desenvolvimento de uma tecnologia com potencial de corrigir falhas cromossômicas em embriões. Ao invés de temer este importante avanço, cientistas do mundo inteiro renovam seu entusiasmo, pedem cautela e ética para o seu uso, mas comemoram confiantes a expansão de mais esse horizonte.
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