* Roteirista de cinema e crítico literário
Em 1986, o crítico literário e teórico de mídia Friedrich Kittler citava Mick Jagger em um artigo sobre a Agência Nacional de Segurança dos EUA, a NSA: "Maybe Jagger was wrong. We can always get what we want, from CDs to cable TV. Just not what we need: information on information." ("Talvez Jagger esteja errado. Nós sempre podemos conseguir o que queremos, dos CDs à TV a cabo. Só não aquilo que precisamos: informação a respeito de informação.", em theoryculturesociety.org/kittler-on-the-nsa/). De fato, a informação tem estado sempre ao nosso alcance, mas nem sempre a que faz a diferença. Metadata, informação sobre informação, pertence a programadores, criptógrafos, militares e máquinas, enquanto estes realizam a manutenção do semianafalbetismo do público e das ditas ciências humanas a respeito de tudo que envolve e é envolvido por números.
Parte da celebração em torno de Citizenfour, documentário de Laura Poitras, parece fundar-se na capacidade do filme de revelar o intimismo, a humanidade, os pequenos momentos de Edward Snowden, o ex-funcionário que vazou informações sobre vigilância global dos arquivos da NSA. Mas o filme mostra um Snowden preocupado justamente com sua imagem, com seu nome, com sua personalidade. Por um lado, ele está decidido a reclamar publicamente a autoria dos vazamentos. Por outro, Snowden deixa claro sua preocupação em não fazer disso uma história sobre sua pessoa.
Embora Snowden tenha sido de fato uma "diferença que faz diferença" (como o antropólogo Gregory Bateson define o conceito de informação), dá pra dizer, em concordância com as ideias do próprio Snowden, que a história dos vazamentos de informação sobre a vigilância massiva da NSA vai muito além da questão ética e moral de se espionar a vida privada de milhões de pessoas em busca de suspeitos.
METADATA
Por um tempo, a NSA justificou a vigilância em massa com o argumento de que estaria apenas coletando metadados, ou seja, informação catalográfica, não "informação real". Quem ligou para quem, local e duração da ligação, e assim por diante. Metadados seriam apenas "contexto", enquanto informação real seria o conteúdo. No entanto, o cruzamento de metadados revela muito mais do que qualquer conteúdo jamais revelaria. Se alguém ligou para uma clínica cardiológica, depois para um hospital, depois recebeu ligações de uma farmácia especializada em remédios cardíacos, tem-se uma completa narrativa realista da vida daquela pessoa, e com as devidas lacunas (como aconselha um manual de escrita literária) para o leitor preencher.
Metadados são recolhidos por um algoritmo, e com isso têm-se facilmente o argumento da neutralidade. Porém, mais do que ser uma fachada, a neutralidade da máquina serve abertamente ao poder, que apenas precisa inserir alertas para determinadas repetição de determinados termos, como terrorismo ou bomba. O algoritmo busca "indiscriminadamente" esses termos, fornece os metadados pertinentes e os cruza entre si, gerando uma narrativa instantânea. Metadados são literatura feita por computador.
Do outro lado do computador, há a figura do militar hermeneuta. Ele é facilmente isento de culpa, já que apenas interpreta essa literatura. O que o caso Snowden mostra é o poder do ato hermenêutico. O que sobra do texto original, uma vez desmontado pela interpretação? Um militar hermeneuta já respondeu, e publicamente, a essa pergunta: "Sim, é isso mesmo, nós matamos pessoas com base em metadados" (nybooks.com/blogs/nyrblog/2014/may/10/we-kill-people-based-metadata)
Há sempre o argumento de que a maioria de nós não tem o que temer. Mas talvez não seja exagero cultivar uma postura paranoica diante dessa combinação cibernética de homem e máquina à procura de símbolos, imagens, figuras e sentido - à procura de texto claro, enfim - nas pegadas que deixamos na nuvem. Ninguém tem nada a temer, mas preste atenção, é a mensagem secreta transmitida por toda vigilância.
VIGILÂNCIA
Toda essa vigilância, descontada sua moralidade, não passa da mera extensão lógica da natureza da tecnologia digital, cuja metáfora mais eficiente é a da nuvem.
A nuvem contém tanto o desdém por limitações de distâncias, próprias de tecnologias antigas, quanto abstrai os enormes bunkers que mantêm os computadores das grandes empresas de armazenamento a salvo das bombas.
Como atesta a figura da nuvem sorridente, a experiência da computação digital tem sido cada vez mais a da sensualidade e da facilidade. O proverbial cadáver que sorri da publicidade nunca esteve tão vivo. O problema é que essa facilidade incentivada pela publicidade, vendida como tecnologia de ponta, conspira para fingir que não existe o hardware, que a interface é a essência brilhante do computador. Enquanto isso, o usuário se aliena cada vez mais de todo esse poder de processamento de números, cujo alcance hoje é tão grande que dele pode ser dito que se encontra em todos os lugares e em nenhum, como uma deidade.
Como Proteu, números detém o poder de mudar de forma. Eles nos tocam apenas com a sensualidade de imagens e sons. Mas o computador continua sendo a entidade capaz de vê-los em sua natureza, traduzir o simbolismo da imagem em texto claro, encontrar rastros.
Histórias de mistério ensinam que tudo deixa um rastro, e que o crime perfeito é um paradoxo. Com Poe, Walter Benjamin viu na tranquila disposição dos móveis da nova casa burguesa as peripécias do criminoso, a rota de fuga, a topografia do crime. O ambiente digital funda não só o crime perfeito, mas fornece também sua velocidade, local exato, conexões com outros crimes - tudo a muitos gigabytes por segundo. Como uma sessão de análise, o digital é uma longa lista de rastros cifrados, onde tudo é contexto. Para quem sabe ouvir, falar já é confessar.