* Professor titular de Ética e Filosofia na USP. Escreve quinzenalmente no caderno PrOA
Imaginem que a mulher mais importante do país tenha sido estuprada, quando jovem, por um militar hoje general. A partir daí, ela construiu uma persona baseada na frieza. Mas um dia, revendo o algoz, decide fazer de seu sofrimento pessoal o veículo para uma luta que é das mulheres em geral. Falo de Claire Underwood, primeira-dama dos Estados Unidos na série House of Cards. É esse drama pessoal que humaniza uma mulher, de resto gélida na realização de suas ambições.
Ou como disse no Facebook Mariana Laham : "Dia desses queria comprar um chiclete, o único lugar aberto era um botequim. Entrei, em segundos notei que só havia homens presentes. Automaticamente todas as medidas protetoras passaram na minha cabeça, treinada que está por anos tendo que me cuidar por ser mulher, fugindo de mãos, abraços, sussurros não pedidos. Com que roupa estou, não olhar muito, também não baixar muito os olhos, andar pelo corredor, evitar qualquer aproximação física, tentar ser invisível e quem sabe angariar a simpatia de algum dos presentes. Atitudes normalmente inconscientes, no entanto absolutamente presentes. Saí pensando que homem nenhum faz ideia do que significa entrar num lugar e se sentir em risco por existir enquanto representante de um gênero, que nenhum homem se questiona sobre a roupa que está usando e suas respectivas conotações. Ele entra e compra a joça do chiclete! E segue a vida sem ser lembrado insistentemente de que é um homem. Igualdade salarial? Infelizmente falta muito pra tanto. Não somos tratadas de forma igual nem na hora de chupar um chicabon..."
Estas pessoas que não temos ideia de como se sentem são metade do planeta. Vivemos com elas. Nós, homens, nascemos com um bônus: nem precisamos imaginar o que é se proteger do toque, desejar ser invisível. Fala-se tanto no desejo que as mulheres têm de ser vistas, admiradas, desejadas. Mas falamos do desejo que muitas sentem de ser invisíveis?
Mulher Invisível é o nome de uma comédia. É também o nome de um desejo?
Demorou demais. Há milhares de anos, na esmagadora maioria das sociedades, as mulheres não são iguais aos homens. Não ganham salário igual, e esse não é o maior problema. Em minha universidade, a USP, alunas abusadas sexualmente não encontraram escuta humana quando quiseram se queixar. Um político, há duas semanas, cumprimentou as mulheres por sua presença na política. Ele estava zoando? Elas não são nem 10%.
Se fosse mulher, diria: minha paciência se esgotou. Não quero esperar mais um minuto. Tudo, já. Igualdade plena. Mesmo salário, mesma chance de promoção, direito de ir e vir (digo isso lembrando o chiclete da Mariana, e penso: coisa velha, direito de ir e vir... Não está na Constituição desde 1891? Está. Mas não na realidade machista).
Não sou mulher, mas minha paciência se esgotou. Não dá mais para suportar esse absurdo. Faz mal a todos. A opressão não é ruim só para o oprimido. Também afeta quem se beneficia dela. O mundo fica cinza. Precisa ganhar cores.
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