* Escritor e dramaturgo, autor de Só a Exaustão Traz a Verdade (2014). Escreve mensalmente no PrOA
Subimos as largas rampas em direção ao topo da PUC, em São Paulo. Vista do alto, a cidade assusta. As torneiras, quando não estão secas, servem água do volume morto. Estou conversando com um jovem pesquisador do curso de Artes do Corpo. Pergunto a ele como pode funcionar o corpo do artista em dor. Preciso saber se há alguma possibilidade de criação em dor. Ele pergunta se me refiro à dor do corpo ou à dor do espírito. Respondo que tudo é corpo. Ele concorda. Dá um gole no chá, depois confessa ter saído há muito pouco tempo de uma longa internação. Seu corpo não dói mais, mas ele ainda conserva a memória do medo de senti-la. "A dor foi minha companheira. Ainda é".
Perdizes é uma vizinhança tranquila. Observamos a paisagem, esperando o tempo que leva uma nova informação para ser assimilada. Depois de um tempo, revela que o corpo artista está morto quando sente dor. "A dor talvez seja a verdadeira presença, talvez o corpo só consiga experimentar o aqui e o agora, quando dói. Mas não há possibilidade de criação durante a dor. A dor é a perda do controle. É preciso assimilar a dor, para transformá-la em arte." Perguntei a ele se o viver artístico não seria uma chave para suportar o sofrimento. Ele disse que a chave para suportar a dor seria não associá-la ao sofrimento. "Se é possível sofrer sem sentir dor, também deve ser possível sentir dor sem sofrer."
Uma professora se junta a nós. Compartilhamos a questão da dor. Ela diz não se tratar do buscar uma interpretação para a dor, tampouco uma origem da dor na biografia do indivíduo, mas experimentá-la como uma intensidade que desnecessita de compreensão ou interpretação. "Abraçar a doença aspirando à saúde", disse Friedrich Nietzsche, muito antes de Gilles Deleuze, o filósofo que ela estuda e ensina. "Não há nada mais cruel do que culpar o corpo que dói. Nem tudo é somatização. Nem tudo é culpa do paciente. O câncer, por exemplo. É uma irresponsabilidade atribuir uma doença tão misteriosa a processos de recalque."
Doer é um processo ativo e exige uma construção de fuga. É preciso fugir do corpo vítima. Aceitar a dor também é fugir dela. Meu amigo, o jovem pesquisador, lembra do que falávamos enquanto subíamos as rampas. Sobre o corpo artista em estado de dor. Está animado, como se uma nova ideia o tivesse feito fugir. "Enquanto doía, não criava. Mas há uma dor que fica. Essa dor, quando assimilada, pode se tornar sofrimento ou obra de arte." A professora, deleuzeana, disse que "sofrimento jamais". São interessantes essas manhãs na Academia. Estão quase todos excitando seus pensamentos.
Lembro que, em A Montanha Mágica, Thoman Mann afirma que "o corpo doente está em festa". Os olhos da professora brilham. É difícil encontrar alguém que tenha conseguido atingir o topo das mil páginas escritas pelo incansável autor alemão. A festa, assim como a doença, é um bloco de intensidades. "É preciso assimilar tanto quanto é preciso saber esquecer a dor", falou a professora, engolindo o café. São Paulo, longe dos nossos pés, é uma cidade estranha. Não faz tempo que cheguei, mas já sinto falta da praia do Guaíba.
Súbito, meus ouvidos lembram do canto da perdiz, um som agudo, curto e harmônico. As perdizes, assim como os motores, cantando todas ao mesmo tempo, podem compor uma sinfonia enlouquecedora. Os moradores do bairro são estranhos. A nobreza da região é contrabalançada com a profusão de estudantes. Um contrabalanço nem tanto assim. Na universidade, assim como em Perdizes, o que prevalece é essa nobreza burguesa. O bom modo advindo do dinheiro. São muitos os alunos se acotovelando na calçada, bebendo cerveja às 10 horas da manhã da terça-feira. Perto deles, britadeiras. Perdizes. A professora olha pra baixo e cospe. Um espírito perdiz toma conta de mim. Volto no tempo. 1850. Sou uma ave com rumo certo para a morte. Canto.
Na sala quente e apertada do último andar, duas meninas dançam quase peladas. Quase prestamos atenção. Passamos a maior parte do tempo quase julgando. Quase dormindo. Quase gostando. As britadeiras, em volta, quase eram incorporadas à performance. Também perdizes quase podiam ser ouvidas. Tudo é quase nas artes do corpo.