Professor titular de Ética e Filosofia na USP. Escreve quinzenalmente no caderno PrOA
Dois filósofos foram condenados por corrupção, ao longo de dois mil e quinhentos anos de filosofia. Dois milênios os separam. O primeiro foi Sócrates, em 399 a.C. O segundo, Francis Bacon, em 1621. Sócrates foi executado pelos atenienses. Já Bacon foi condenado, e depois indultado, por desvio de dinheiro público.
Para nós, a condenação de Sócrates é um escândalo, como afirmei na última coluna. "Corrupção", entre os antigos, se referia à corrupção dos costumes. Seu grande exemplo era quando uma pessoa - ou uma cidade - abandonava os valores viris, austeros, exigentes, para se afeminar, entregando-se ao luxo e à complacência. A acusação a Sócrates é que, sempre perguntando, sempre questionando, ele corromperia a juventude, fazendo-a perder a crença nos deuses da cidade. Para nós, isso é filosofia, é pensamento, é liberdade, é inteligência. Para uma sociedade conservadora, abrir ao debate as bases de sua vida coletiva era deboche. Essa ideia de corrupção, hoje, só permanece em meios muito atrasados - e geralmente hipócritas.
Já a condenação de Bacon é muito diferente. Além de filósofo, foi político. Serviu ao rei Jaime I como ministro e dele recebeu o título de visconde. Em 1621, foi denunciado no Parlamento por corrupção - no sentido moderno, ou seja, de furto do dinheiro público. (A corrupção antiga afeta os costumes; a moderna, o Erário). Confessou ter recebido presentes das partes no tribunal que presidia, mas jurou que nenhum suborno afetou suas decisões. Acaba aí sua carreira política, continua sua vida filosófica.
Ao condenar Sócrates, Atenas ataca diretamente sua filosofia. Ele é executado justamente por ser quem é: um dos maiores pensadores que já houve. Quando, em 1952, Merleau-Ponty assume a cátedra de filosofia no Collège de France, sua aula inaugural evoca Sócrates - e não por acaso se chama Elogio da Filosofia. Elogiar a filosofia é louvar o primeiro grande filósofo. Elogiar a filosofia é louvar o debate, a dúvida, o diálogo. Milhares de anos de filosofia constituem uma longa reafirmação daquilo que Atenas, mesmo sendo uma democracia, condenou: o questionamento sem fim, a crença na autonomia do sujeito e, mais que tudo, a convicção de que nada é off-limits para o pensamento. Não há nada que não possa ser pensado, debatido.
Bacon é condenado - a uma pena leve, que só pesa para ele porque o tira do poder - por razões que não têm a ver com seu pensamento. Até foi bom para a filosofia ele deixar a corte, porque a partir daí escreverá os Ensaios e A Nova Atlântida. Poderia ter sido um ministro honesto, poderia nem mesmo ter sido político - e escreveria as mesmas obras. Sua condenação não é uma condenação da filosofia. Sócrates viveu a filosofia; Bacon viveu, entre outras atividades, a filosofia, a corte, a política. Nunca houve um filósofo como Sócrates - o único da profissão a não escrever nada, o único a pensar pela forma do diálogo, o único que filosofava ensinando; e ensinava, filosofando.
>>> Leia outros textos de Renato Janine Ribeiro