* Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve quinzenalmente no caderno PrOA
Um dia, no tempo da grande inflação, tomei um táxi, para uma distância relativamente curta. O motorista falou mal de toda a desonestidade que campeava no Brasil. Tinha plena consciência do que acontecia de errado. Todas as suas palavras respiravam uma intensa preocupação com a ética. Quando chegamos a nosso destino, ele pegou a tabela - naquela época o custo era expresso em URVs, ORTNs, unidades de valor que nem mesmo eram a moeda corrente - e fez a conversão num preço que, notei, estava errado. Ele tinha puxado para cima o que eu lhe devia. Não reagi, porque era mais tímido do que hoje, na época havia alguns motoristas agressivos e, afinal, não era tanto dinheiro. Mas fiquei matutando. Por que tanta ênfase na ética, a ponto de ser seu único assunto - e, depois disso, uma conduta tão antiética? Eram dois extremos convivendo na mesma pessoa, ao mesmo tempo.
Penso que aí está uma das chaves para entender nosso país. Vivemos desta contradição.
Não foi à toa que em 1989 o Brasil elegeu um presidente com base só na pregação contra a corrupção - o qual depois seria afastado como corrupto. Na sua campanha não falou em política econômica, mas apenas no combate intransigente aos marajás, funcionários que ganhavam salários excessivamente altos em sua Alagoas. Fernando Collor de Mello se tornou em 1992 o único presidente da República processado e condenado por corrupção, no tribunal competente, no caso o Senado - do qual, ironicamente, ele hoje é membro. Passam-se anos, e o senador Demóstenes Torres, do DEM de Goiás, constrói forte fama junto à direita brasileira como paladino da ética. Dá várias capas à revista Veja, que o celebra como exemplo de homem público - até que se descobre que está envolvido em questões eticamente condenáveis e é cassado por seus pares, em 2012, embora ainda hoje não tenha sido condenado na Justiça comum.
A pergunta fica: por que tanta mentira? Explica-se isso apenas por uma propensão pessoal, ou é uma máscara escolhida de propósito?
Minha hipótese é que a identidade brasileira é frágil. O brasileiro sente-se inseguro na sua pele. Uma de suas formas de se sentir seguro é afirmar-se decente, muito decente, e mais que isso: só ele é ético, os outros não. O país não dá certo porque sou o único direito no meio de bandidos.
Talvez seja hora de tomarmos mais cuidado com todos os que se proclamam campeões da decência ou da luta contra a corrupção e o crime. Afinal, sabemos desde Freud que muitas vezes, quando alguém insiste demais num tema, é porque afirma o contrário do que é ou do que acredita. Na verdade, desde o Tartufo de Molière, sabemos que muito puritano é na verdade um devasso enrustido. Da mesma forma, pregadores da decência podem apenas estar mascarando sua desonestidade. Alguns deles não hesitam em mentir - o que, na cena pública, é uma das ações mais antiéticas que se possa cometer. Prestar atenção nos exageros do autoelogio reduz nossas chances de nos enganarmos. Ética não é brincadeira.
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