Silvia Ferabolli
Doutora em Política e Estudos Internacionais pela School of Oriental and African Studies SOAS, University of London.
Onde há poder há resistência. Essa máxima de Michel Foucault pode nos ajudar a entender a ascensão do ISIS - Islamic State of Iraq and al-Sham ("Estado Islâmico do Iraque e do Levante") muito mais do que qualquer explicação referente à cisão muçulmana entre sunitas e xiitas. Não precisamos retroceder muito no tempo, uma volta a março de 2003, quando da invasão norte-americana do Iraque, é suficientepara explica as raízes da calamidade iraquiana, onde o poder avassalador dos norte-americanos está encontrando formas também avassaladoras de resistência.
Divisões étnicas ou sectárias, por si só, não desencadeiam conflitos, guerras ou massacres. Elas precisam ser mobilizadas para ter algum sentido político e finalidade prática. A politização das fissuras sociais existentes no Iraque e sua transformação em arma de controle pelas forças de ocupação criaram as condições para que divisões latentes emergissem no país. Como os norte-americanos conseguiram tal façanha? Reduzindo a complexidade da vida política, econômica e social iraquiana a um cálculo estratégico simplista que dividia o Iraque entre sunitas (grupo minoritário, do qual Saddam Hussein fazia parte) e xiitas (a maioria da população, supostamente inimiga de Saddam e seu grupo). Dentro dessa lógica, derrubar o líder sunita, colocar no poder um xiita e marginalizar a minoria sunita era a melhor maneira de garantir apoio à invasão e tranquilidade na troca de regime. A alienação de milhões de sunitas do jogo político - e das benesses econômicas - no pós-2003 e, especialmente, desde que Malik ("nosso homem no Iraque", nas palavras de George W. Bush) chegou ao poder, em 2006, desencadeou a revolta sunita que hoje encontra sua expressão máxima (embora certamente não consensual) nas ações do ISIS.
Outra questão fundamental não levada em conta pelos brilhantes estrategistas estadunidenses é a realidade regional. O Iraque não está isolado em uma bolha experimental onde os americanos podem testar suas habilidades de state building. O país é vizinho do Irã - de absoluta maioria xiita, contra o qual Saddam Hussein travou uma das mais sangrentas e inúteis guerras da região; e da Arábia Saudita, país que, desde a Revolução Iraniana de 1979, entoa um discurso anti-xiita quase tão furioso quanto seu discurso antissemita (típico do movimento Wahabi). Note que a rivalidade atual entre Arábia Saudita (sunita) e Irã (xiita) também não é milenar, mas está localizada na história recente, mais precisamente em 1979, porque quando a dinastia Pahlavi, aliada dos Estados Unidos, estava no poder, as relações entre os dois países iam muito bem, obrigado. Foi apenas quando o Aiatolá Khomeini passou a denunciar a hipocrisia das relações da Arábia Saudita com os Estados Unidos, o grande aliado e fiador das ofensivas israelenses na região, que as tensões entre os dois países eclodiram (embora essas nunca tenham evoluído para um confronto direto).
Quando os ventos da Primavera Árabe começaram a soprar, a rivalidade entre Arábia Saudita e Irã mostrou toda a sua força. A Síria, receptora maior dos bilhões de dólares que fluem todos os anos das monarquias petrolíferas do Golfo para o restante do mundo árabe na forma de ajuda oficial e extraoficial desde o choque petrolífero de 1973, mostrou-se rebelde demais para um país que viveu suas últimas décadas de extrair recursos dessas monarquias sob a bandeira de conter a ameaça israelense (mesmo que não tenha havido um único atrito de fronteiras digno de nota entre Síria e Israel desde a década de 1970). Quando manifestações pacíficas irromperam no país e Assad respondeu com brutalidade desmedida - como de costume - grupos descontentes dentro e fora do regime começaram a se articular não mais para demandar reformas, como os manifestantes iniciais o fizeram, mas para exigir a saída de Assad. A Arábia Saudita, já há muito descontente com a aproximação de Assad (Alawita-xiita) com o seu agora arquirrival, o Irã, decide cobrar sua fatura junto à Síria que, tendo o Irã e a Rússia a seu lado, acha que pode prescindir da patronagem saudita. Ledo engano. Grupos como o ISIS, formados dentro das massas sunitas alienadas da vida econômica e política do Iraque desde a queda de Saddam Hussein e que passaram a ser financiados por abastados cidadãos sauditas e de outras monarquias petrolíferas do Golfo, evoluíram para verdadeiros exércitos de guerrilha que, vendo seus "irmãos sunitas" serem massacrados pelo exército Alawita de Assad, começaram a cruzar a fronteira entre os dois países, elevando os níveis de violência na Síria a padrões internacionais de genocídio.
Como podemos perceber, a ascensão do ISIS e sua capacidade de atuação transnacional não é fruto de um conflito milenar entre sunitas e xiitas, mas de uma conjuntura histórica marcada pela invasão norte-americana do Iraque, pela rivalidade saudita-iraniana, pelos levantes populares da Primavera Árabe e pelos movimentos contrarrevolucionários que se ergueram na região para frear o avanço das reivindicações das massas árabes por liberdade política e desenvolvimento econômico. Infelizmente, em um nível mais amplo, o fortalecimento de grupos violentos como o ISIS reforça a falsa alegação de Assad de que a manutenção de seu regime é necessária para combater grupos jihadistas, assim como justifica a derrubada do governo democraticamente eleito da Irmandade Muçulmana pelos militares egípcios e sustenta a tese de Malik de que os levantes legítimos em cidades iraquianas de maioria sunita são maquinações de grupos fundamentalistas. Presas em um jogo tridimensional que envolve atores de nível nacional, regional e internacional ficam as populações árabe-muçulmanas, reféns das políticas de poder que assolam a região e contra as quais só lhes resta rezar, ou resistir.