Ao discursar na primeira audiência de conciliação que busca um acordo sobre o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes afirmou que a Suprema Corte não vai admitir solução que não contemple a Constituição Federal e a preservação dos direitos fundamentais.
— Esse tribunal não admitirá solução que não contemple a observância da Constituição Federal. É importante que se estabeleça premissa séria no início desses trabalhos. O caminho escolhido pelo Estado brasileiro para a questão indígena é infelizmente a omissão vexatória — disse.
Estão presentes os senadores Jacques Wagner (PT-BA), Tereza Cristina (PP-MS), o deputado Pedro Lupion (PP-PR), além de representantes dos povos indígenas, da União, Estados e municípios.
Mendes afirmou que o resultado da Comissão será submetido ao crivo do plenário da Casa.
O presidente Lula vetou o marco temporal e sancionou outros trechos do projeto no ano passado.
— Não se preocupem aqueles que equivocadamente veem no diálogo o enfraquecimento dos direitos fundamentais. Não há pacificação social com imposição unilateral de vontades. Esse país comporta todos nós em seus múltiplos modos de vida e valores — acrescentou.
Gilmar Mendes lembrou que o artigo 5º da Constituição Federal estabelece que a União concluiria a demarcação das terras indígenas cinco anos após a promulgação, em 5 de outubro de 1988. O ministro citou dados de organizações indígenas que mostram que há 270 terras indígenas pendentes de demarcação, sendo 12 homologadas, enquanto há 409 regularizadas.
— O direito dos povos originários é regido ainda no plano infraconstitucional pelo Estatuto do Indígena. A sociedade brasileira não foi capaz de implantar os compromissos assumidos e nem mesmo de atualizar a legislação —observou Mendes.
Gilmar Mendes voltou a defender que é possível realizar a demarcação de terras indígenas sem desrespeitar as ocupações consolidadas ao longo do tempo e de boa fé.
— É possível cumprir a Constituição demarcando territórios indígenas sem desrespeitar ocupações consolidadas e de boa fé. É necessário demarcar terras indígenas e conferir aos seus habitantes meios de conseguir seus propósitos e objetivos, não com a tutela do Estado, mas como pessoas plenas e independentes — disse Mendes.
O ministro afirmou que, tratar aqueles que ocupam as terras em situações consolidadas como violadores não resolverá o debate.
— Muitos casos de titulação decorreram de ações dos governos federal e estadual. Há inúmeros direitos fundamentais em jogo no conflito que perdura por séculos. A vilanização de indivíduos e a utilização de lentes monocromáticas empobrece o debate e inviabiliza a construção de soluções. A inação não é mais uma opção. A crise não vai se resolver sozinha — defendeu Mendes.
PGR quer "alguma margem" para negociação
A procuradora da República Eliana Torelli, que representa a Procuradoria-Geral da República (PGR) na comissão, disse que há "alguma margem" para negociação no tema e que o diálogo "pode ser importante, mas sem nunca abrir mão dos direitos dos povos indígenas".
— Grande parte da violência contra os povos indígenas decorre da omissão do Estado brasileiro — afirmou.
A PGR não terá voto na comissão e participa apenas como observadora.
O procurador-geral da República, Paulo Gonet, foi intimado a se manifestar, mas disse que se reserva "para opinar sobre o tema de fundo após a conclusão dos trabalhos da comissão especial". Ele defendeu, contudo, que a relatoria do processo seja mantida com Gilmar, ao contrário do pleito dos indígenas, e não se opôs à condição de observadora imposta à PGR.
O líder do governo no Senado, Jacques Wagner (PT-BA), disse que senta na audiência com o espírito de "não eternizar conflitos e problemas".
— A eternização dos problemas não é salutar para ninguém, nem para índios, nem para não índios — afirmou o parlamentar, que é um dos representantes do Senado na comissão criada para discutir o tema.
Ele também elogiou a iniciativa do ministro Gilmar Mendes de enviar o caso para conciliação entre as partes.
A senadora e ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina (PP-MS) disse esperar que se alcance um "denominador comum" no debate.
— Podemos caminhar se todos viermos despidos de preconceitos. Quase chegamos a entendimento no passado com a mesa de negociação do governo federal. Que possamos chegar a um denominador comum sem que ninguém saia prejudicado — defendeu.
Tereza Cristina disse também que espera que os trabalhos da comissão e a conciliação sejam passíveis de serem alcançados antes de 18 de dezembro, data prevista para o fim dos encontros:
— Temos coisas graves acontecendo, como invasões.
"Conciliação é sempre melhor do que conflito", diz presidente do STF
O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, disse, ao abrir a audiência, que "conciliação é sempre melhor do que conflito".
— Embora caiba ao Supremo a interpretação final da Constituição, considero institucionalmente desejável encontrar solução que consiga harmonizar diferentes visões — afirmou o ministro, destacando que a audiência é uma "situação incomum" e uma "experiência pioneira".
Ele ainda ressaltou que a boa-fé e a boa vontade são valores chave para as discussões e que, se não houver perspectiva real de avançar em acordo, o Supremo vai retomar o julgamento.
— Ninguém deve participar desse esforço achando que já ganhou — alertou, acrescentando que "a procrastinação não está posta na mesa".
Barroso ainda reafirmou sua visão pessoal sobre o tema, que manifestou no julgamento em que declarou a inconstitucionalidade do marco temporal.
— Porém, preferi aguardar esforço de conciliação proposto pelo relator, que considero iniciativa louvável — disse, reconhecendo a existência de "clara divergência entre o Judiciário e Executivo, de um lado, e do Legislativo, de outro".
Funai pede soluções "sem retrocesso"
A presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, pediu que a comissão conciliatória do STF busque soluções e caminhos que evitem retrocessos aos direitos dos povos indígenas.
— Os povos indígenas precisam ser considerados. Reafirmamos que, neste momento, tenhamos a oportunidade de trazer soluções e propostas que não venham trazer retrocessos a direitos fundamentais postos na Constituição. Os povos indígenas precisam da garantia do Estado brasileiro de que venham a continuar sendo povos indígenas com a garantia de cláusulas pétreas, sem negar ou inviabilizar a existência de povos indígenas — disse Joenia, em fala inicial.
Ela voltou a defender que o lado mais frágil no debate são os povos indígenas.
— Os povos indígenas enfrentaram anos de violência e superaram o momento de assimilação dos povos. Os povos indígenas são cidadãos detentores de direitos, inclusive sobre projetos em suas próprias terras, seja de agricultura ou de extrativismo, mas que cada povo tenha sua concepção de projeto respeitada — reafirmou. Wapichana disse que a Funai busca diálogo no processo de demarcação das terras indígenas.