São enganosas as postagens que usam dados de 2016 para levantar suspeitas sobre a destinação de 559 itens recebidos como presentes em cerimônias como chefe de Estado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em seus dois primeiros mandatos presidenciais. O Tribunal de Contas da União (TCU) fez, à época, auditoria no acervo, e determinou a localização e incorporação de 568 peças ao patrimônio da União. O processo foi concluído em 2020, em acórdão da Corte de Contas que considerou cumpridas as determinações.
Conteúdo investigado
Uma publicação nas redes sociais traz uma montagem com um trecho cortado de uma declaração de Lula e o texto “Sabe o que é alguém sair da presidência com 11 containers de acervo sem ter onde por?… Sair com cadeira, com trono, com papel, com tudo que vocês possam imaginar?”. Na legenda do post, foi incluída a frase “Onde estão esses bens?”. No X (antigo Twitter), a frase adicionada é “Ele ainda reclama! Debochado, cínico”.
Onde foi publicado
Foi publicado no Facebook, Instagram e X.
Conclusão do Comprova
Postagens das deputadas federais Bia Kicis (PL-DF) e Carla Zambelli (PL-SP) trazem informações de 2016 para levantar suspeitas sobre a destinação dos itens do acervo presidencial de Lula. Para tanto, compartilham título e matéria do Poder360 que diz: “Em 2016, Lula havia devolvido só nove de 568 presentes de chefes de Estado, indicou TCU”.
À época, o TCU fez auditoria no acervo de presentes recebidos em cerimônias oficiais por Lula e Dilma Rousseff (PT) quando ocuparam a Presidência da República, e determinou a localização e incorporação de 568 peças dadas a Lula e 144 a Dilma ao patrimônio da União. Até então, não havia clareza na legislação sobre a destinação desses bens.
Conforme o TCU, a determinação foi cumprida, como mostra o acórdão 1577, de 2020. Apenas oito itens do acervo de Lula não foram localizados. De acordo com registros do Sistema de Informação do Acervo Privado Presidencial (Infoap), eles foram estimados em R$ 11.748,40, montante que, segundo o TCU, foi restituído à União em 10 parcelas de R$ 1.174,84.
Ao Comprova, o Instituto Lula afirma que os itens que permaneceram no acervo pessoal de Lula estão, em sua maior parte, sob a guarda do instituto em dependências do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, em São Paulo. A outra parte está guardada no Museu da República, por meio de um termo de cessão feito entre o Instituto Lula e o museu, que abrigou as peças mais valiosas e sensíveis.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações, que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor. É um conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Alcance da publicação
O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até o dia 18 de agosto, a publicação somava mais de 1,5 milhão de visualizações nas três redes encontradas. No Facebook, eram 357 mil visualizações, 23 mil reações e 6,6 mil comentários, enquanto no X eram 228,3 mil visualizações, 11,3 mil curtidas e 4,6 mil compartilhamentos. Já no Instagram, a publicação contava com 931 mil visualizações, 90,5 mil curtidas e 8,3 mil comentários.
Como verificamos
Em primeiro lugar, o Comprova encontrou a origem da declaração de Lula. Para isso, como há a presença da logo da Rede TVT, pesquisou no Google as palavras-chave “coletiva Lula TVT presentes”, chegando ao corte “Coletiva Lula: Os presentes”, concedida em 4 de março de 2016, após o político ser levado em condução coercitiva para depor nas investigações da operação Lava-Jato.
Em seguida, procurou a entrevista coletiva completa, disponível também no canal de YouTube da emissora. A declaração do atual presidente está entre 13min12seg e 13min45seg.
Em seguida, foram procuradas matérias e reportagens sobre a coletiva e os presentes recebidos durante os dois mandatos de Lula, de 2003 a 2010. O Comprova também buscou informações nos canais oficiais do governo federal, da Secretaria de Comunicação Social (Secom) e do TCU. Por fim, entrou em contato com a Secom, o tribunal e o Instituto Lula para esclarecer informações, além de contatar as autoras das publicações verificadas.
A declaração de Lula
Em 4 de março de 2016, o então juiz federal Sergio Moro, hoje senador, ordenou a condução coercitiva de Lula para depor na Polícia Federal durante as investigações da Lava-Jato. Após o depoimento, o petista deu uma entrevista coletiva no Diretório do PT em São Paulo. Dentre os assuntos abordados, o presidente citou que o Ministério Público estaria investigando seu acervo pessoal, contendo presentes recebidos em visitas internacionais.
A descrição da fala completa de Lula sobre o acervo pessoal é a seguinte (no vídeo original da coletiva, o trecho da declaração começa em 13min03seg):
“Você tem que responder pelo acervo, eles agora querem saber do acervo do Lula. Poderia ter querido saber do acervo antes de me comprometer com essas tranqueiras todas. Vocês sabem o que que é alguém sair da presidência com 11 contêineres de acervo sem ter onde pôr? Vocês sabem o que é sair com cadeira, com trono, com papel, com tudo que vocês possam imaginar? Porque se somar todos os presidentes da história desse país, desde Floriano Peixoto, eu fui o que mais ganhei presente. Porque viajei mais, porque trabalhei mais, porque viajei o mundo, eu tenho até trono da África. O que que eu faço com isso? É uma coisa do presidente, mas de domínio público, eu tenho que tomar conta, mas ninguém me paga. Então é o seguinte, essas coisas, se o Ministério Público está preocupado, ô, Rui (Falcão), eu acho que é importante vocês oferecerem meu acervo. Eles têm um prédio lá redondo, de vidro fumê, que pode guardar as coisas que eu tenho. Aquilo não me faz nenhuma importância, a quantidade de ouro que eu tenho. Eu uso meu Citizen aqui, não vou fazer merchandising, custa uns R$ 500, 600. Eu não quero relógio para valorizar meu pulso, eu quero um relógio para valorizar a hora. Eu quero saber se ele funciona ou não”.
A fala utilizada na publicação foi recortada do trecho entre “Vocês sabem o que é alguém sair da presidência com 11 contêineres…” e “…O que que eu faço com isso?”.
Lula deixa a presidência com 11 contêineres
Diante do inquérito que apura suposta venda de joias e outros objetos de valor recebidos em viagens oficiais do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o vídeo de Lula foi recuperado por bolsonaristas para levantar suspeitas sobre a destinação dos presentes recebidos pelo petista em seus dois mandatos presidenciais).
Em entrevista por telefone ao Comprova, Paulo Okamotto, diretor do Instituto Lula, afirmou que, após o segundo mandato do petista, foram retirados 11 contêineres que compunham o acervo presidencial:
“São 11 contêineres. Mas não são 11 contêineres de presentes. São 11 contêineres de acervo presidencial. O que é esse acervo presidencial? As pessoas mandaram carta para o Lula, 400 mil cartas mandadas para o Lula, isso compõe o acervo presidencial, entendeu? As pessoas deram 180 bíblias para o Lula, isso compõe o acervo presidencial, e assim vai por diante. O cara ganhou uma bola, uma camiseta, uma caneta, um monte de coisa que a população deu, que popular deu. Isso dá milhares e milhares e milhares de itens”, diz Okamotto, acrescentando que esse material está acondicionado em dependências do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo.
Esses itens estão sob a guarda do Instituto Lula, descritos no site da instituição.
A legislação sobre o acervo presidencial
Desde a redemocratização, em 1988, a legislação sobre o acervo presidencial foi alterada por três vezes. A primeira delas é a Lei 8.394, de 1991, que determina o que é o patrimônio privado dos presidentes. Nessa lei, contudo, não há nenhuma citação sobre a destinação de presentes recebidos pelas autoridades.
Em 2002, por meio do Decreto 4.344, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) regulamentou a lei anterior e ampliou seu conteúdo. Essa é a primeira vez em que é citado o recebimento de presentes e a destinação para o acervo presidencial.
Segundo a legislação, “os documentos bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de troca de presentes, nas audiências com chefes de Estado e de Governo” devem ser destinados ao acervo presidencial, sejam recebidos em viagens ao exterior ou entregues por autoridades estrangeiras no Brasil.
A redação dessa lei, no entanto, gerou, segundo especialistas, uma interpretação dúbia sobre os tipos de objetos que deveriam ter como destino final o acervo presidencial e quais seriam de propriedade privada do presidente. Para muitos, somente presentes recebidos em cerimônias oficiais deveriam ir para o acervo da Presidência, e, com isso, mantinham para o acervo pessoal todos os outros que fossem recebidos fora desses eventos.
Para evitar essa dubiedade, o TCU publicou o acórdão 2255/2016, que define que todos os presentes recebidos pelos chefes do Executivo brasileiro devem ser incorporados ao acervo presidencial. As únicas exceções são objetos de caráter personalíssimo, como roupas e perfumes, e de consumo imediato e perecíveis, como alimentos ou bebidas.
Auditoria do TCU nos presentes recebidos por Lula
Em 2016, seis meses após a condução coercitiva de Lula para depoimento à PF, o Tribunal de Contas da União realizou auditoria nos presentes recebidos pelos presidentes da República entre janeiro de 2003 e maio de 2016 cadastrados no Sistema de Informação do Acervo Privado Presidencial. O objetivo, como consta no acórdão 2255/2016, foi “averiguar desvio ou desaparecimento de bens pertencentes à União nos palácios do Planalto e da Alvorada”.
Na ocasião, o TCU constatou interpretação equivocada do Decreto 4.344/2002, que dispõe sobre a preservação, organização e proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República, pois haviam sido incorporados ao acervo da União somente nove presentes recebidos por Lula e seis por Dilma de um total de 1.073 itens analisados, sob a justificativa de que o número restrito se referia àqueles recebidos em cerimônias formalmente denominadas de “troca de presentes”.
Segundo o TCU, essa interpretação do decreto foi equivocada. O órgão, então, fixou o seguinte entendimento: “(…) Não só os documentos bibliográficos e museológicos, recebidos em eventos formalmente denominados de ‘cerimônias de troca de presentes’, devem ser excluídos do rol de acervos documentais privados dos presidentes da República, mas, também, todos os presentes, da mesma natureza, recebidos nas audiências da referida autoridade com outros chefes de estado ou de governo, independentemente do nome dado ao evento pelos cerimoniais e o local que aconteceram”.
A exceção, segundo o TCU, refere-se aos itens de natureza personalíssima (medalhas personalizadas e grã-colar) ou de consumo direto pelo presidente da República (bonés, camisetas, gravata, chinelo, perfumes, entre outros). Sendo assim, do total de 1.073 presentes analisados no período auditado, o TCU excluiu 361, entendendo serem de natureza pessoal. Restaram 712 itens: 568 (Lula) e 144 (Dilma) que deveriam ser localizados em incorporados ao acervo da União.
Em 2019, após análise determinada pelo TCU e realizada pela Diretoria de Documentação Histórica (DDH) do Gabinete Pessoal do Presidente da República, a partir do Sistema de Gestão de Acervos Privados da Presidência da República, foi feita uma recontagem dos bens que deveriam ser restituídos ao acervo presidencial dos dois presidentes. Conforme o acórdão 177/2019, após a reavaliação, o número de itens que deveriam ser devolvidos totalizaram 434 bens de Lula e 117 de Dilma. Os itens estão disponíveis para consulta no site da Presidência.
Em relação a Lula, objeto da peça de desinformação, o TCU informou ao Comprova que somente oito peças não foram localizadas. A esses itens foi estipulado um valor total de R$ 11.748,40 que, segundo o TCU, foram restituídos à União em 10 parcelas de R$ 1.174,84. A resposta também consta em matéria da CNN Brasil.
Dessa forma, explica o TCU, o acórdão 1577/2020 considerou cumpridos os subitens 9.2.2 e 9.2.3 do acórdão 2255/2016, que determinou a reincorporação ao acervo da União dos 568 bens e 144 bens recebidos, respectivamente, por Lula e Dilma em cerimônias com chefes de Estado ou de governo no período em que ocuparam a presidência.
O caso de Bolsonaro
No caso de Bolsonaro, a suspeita da PF é que os presentes recebidos pelo ex-presidente tenham sido omitidos dos órgãos do poder público e desviados para fins de enriquecimento pessoal.
As suspeitas foram reveladas em março deste ano, após o Estadão mostrar que o governo Bolsonaro tentou trazer ilegalmente para o país colar, anel, relógio e um par de brincos de diamantes avaliados em € 3 milhões, o equivalente a R$ 16,2 milhões. As joias foram um presente do regime da Arábia Saudita para o então presidente e a primeira-dama Michelle Bolsonaro e foram apreendidas no aeroporto de Guarulhos (SP).
A PF passou a investigar o caso e, neste mês, no dia 11, deflagrou a Operação Lucas 12:2, com o objetivo de descobrir se presentes de alto valor dados ao ex-presidente foram omitidos do acervo público e negociados para enriquecimento ilícito. Até o momento, a PF constatou que foram negociados dois kits de joias da marca suíça Chopard, duas esculturas douradas e um relógio da marca Patek Philippe.
Na noite do 11, a defesa de Bolsonaro divulgou nota dizendo que o ex-presidente nega ter se apropriado ou desviado bens públicos e afirmando que coloca à disposição da Justiça sua movimentação financeira.
Questionado pelo Comprova se, na época da auditoria no acervo presidencial de Lula, foi constatada a venda de algum item, o TCU respondeu: “Não localizamos análise do Tribunal nesse sentido”.
O que diz o responsável pela publicação
As deputadas Bia Kicis e Carla Zambelli foram contatadas. Bia Kicis respondeu: “A postagem é um vídeo da fala dele à época. Não tem nada de enganosa. É sobre o que ele diz que levou. Se devolveu depois é outra história”.
Já Carla Zambelli disse que “o vídeo tem fonte e trata de um assunto específico: Lula ficou com 11 contêineres de presentes que ganhou durante seu mandato e se gaba disso no vídeo”. Ela acrescenta: “O desfecho não desfaz o fato dele ter saído da presidência com material que não lhe pertencesse. E mais: não se sabe se ele devolveu realmente tudo o que deveria, já que sequer mandava para o acervo presidencial”.
O que podemos aprender com esta verificação
Utilizar trechos de falas e entrevistas fora de contexto é uma tática comum entre pessoas que publicam desinformação. Ao encontrar uma publicação com declarações curtas – os chamados “cortes” — procure buscar pelo vídeo original para entender o contexto.
Além disso, é muito comum que desinformadores produzam conteúdos para gerar comparações entre políticos e personalidade, geralmente quando há uma medida ou ação polêmica envolvendo um deles. Por isso, é importante pesquisar sobre o contexto em que determinada declaração ou informação foi dada.
Por que investigamos
O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema
Em março deste ano, o Comprova publicou um Explica sobre a destinação dos presentes ofertados a presidentes brasileiros.
As declarações de Lula costumam ser alvo de conteúdos desinformativos. Recentemente, o Comprova verificou piada feita pelo presidente sobre a perda do dedo pegando caranguejo, que ele não anunciou confisco da poupança dos brasileiros e que vídeo engana ao “checar” discurso dele sobre desigualdade social.