O segundo dia do julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que analisa uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) que pode tornar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) inelegível pelos próximos oito anos foi encerrado por volta das 22h desta terça-feira (27). A sessão foi dedicada exclusivamente à manifestação do relator do caso, ministro Benedito Gonçalves, que votou por tornar o ex-presidente impedido de concorrer até 2030.
— O Tribunal Superior Eleitoral se manterá firme em seu dever de, como órgão de cúpula da governança eleitoral, transmitir informações verídicas e atuar para conter o perigoso alastramento da desinformação que visa desacreditar o próprio regime democrático — declarou Benedito ao proferir seu voto.
Bolsonaro é investigado por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, cometidos em reunião com embaixadores estrangeiros, no Palácio da Alvorada, em 18 de julho de 2022.
De acordo com o voto do relator, pela parcial procedência da ação ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), houve responsabilidade direta e pessoal de Bolsonaro ao praticar “conduta ilícita em benefício de sua candidatura à reeleição”.
O prazo de inelegibilidade é contato a partir das Eleições Gerais de 2022. O ministro excluiu o então candidato à Vice-Presidência Braga Netto da sanção de inelegibilidade em razão de não ter sido demonstrada sua responsabilidade na conduta.
O relator determinou a comunicação imediata da decisão à Secretaria da Corregedoria-Geral Eleitoral, para que, “independentemente da publicação do acórdão, promova a devida anotação no histórico de Jair Messias Bolsonaro no cadastro eleitoral na hipótese de restrição à sua capacidade eleitoral passiva”.
O julgamento será retomado na sessão desta quinta-feira (29) com os votos dos ministros Raul Araújo, Floriano de Azevedo Marques, André Ramos Tavares, Cármen Lúcia (vice-presidente do TSE), Nunes Marques e Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal.
Confira os principais argumentos apresentados pelo relator:
Premissas de julgamento
Ao adentrar o mérito do caso, o ministro Benedito Gonçalves dividiu seu voto em três partes: premissas de julgamento, fixação da moldura fática e subsunção dos fatos às premissas. Na primeira parte, ele discorreu sobre os elementos típicos do abuso de poder político e do uso indevido dos meios de comunicação, salientando que os tipos são abertos e que os bens jurídicos tutelados por eles são abstratos. “Por isso coube à leitura e à jurisprudência construir parâmetros para aferir e punir desvios que desabonem o exercício normal do poder”, disse.
O ministro ressaltou que o abuso de poder político se caracteriza como ato do agente público praticado mediante desvio de finalidade, com a intenção de causar interferência no processo eleitoral. Por sua vez, o uso indevido dos meios de comunicação está caracterizado na exposição desproporcional de um candidato em detrimento dos demais, ocasionando desequilíbrio na disputa eleitoral.
“A configuração de qualquer tipo de abuso exige que a conduta descrita inicial seja qualificada como grave”, afirmou, destacando que, para a comprovação do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de um fato alterar o resultado da eleição, mas a gravidade das circunstâncias sujeitas à responsabilização por ações que vulnerem a isonomia, a normalidade e a legitimidade do pleito.
Para Gonçalves, a Aije possui balizas sólidas para a aferição da gravidade, desdobrando em dois aspectos: qualitativo, no alto grau de reprovabilidade da conduta; e quantitativo, na significativa repercussão sobre a disputa eleitoral. “A gravidade será sempre um fator contextualizado, ou seja, avaliado conforme a circunstância da prática, a posição das pessoas envolvidas e a magnitude da disputa”.
Análise dos fatos
O ministro seguiu apresentando os argumentos dos autores da ação e da defesa. Ele dividiu em três blocos a análise dos fatos. O primeiro trata da preparação do evento e das circunstâncias da realização da reunião com embaixadores. Segundo o relator, ela teria sido planejada em resposta ao encontro do então presidente do TSE, em maio daquele ano, com embaixadores para explicar o sistema eletrônico de votação. Ele refuta a alegação da defesa de que o TSE não teria competência para isso, uma vez que está previsto no artigo 118 da Constituição Federal, segundo o qual o Tribunal é o órgão da cúpula da governança eleitoral, conforme prevê também a Resolução TSE nº 23.483/2016.
Segundo a testemunha Carlos França, ex-ministro das Relações Exteriores, a ideia da reunião foi decisão da Presidência da República. No depoimento, ele negou que tenha participado da organização do evento. Segundo o relator, as testemunhas ouvidas apresentaram relatos de meros espectadores, não auxiliando em nada na reunião. Ciro Nogueira, ex-ministro chefe da Casa Civil, disse que apenas recomendou os convidados. Segundo ele, não houve participação do Itamaraty na realização do evento.
Apesar disso, o ministro Benedito afirma que os documentos dos autos, como notas fiscais e convites, corroboram que houve acionamento da estrutura da União para a reunião com embaixadores. O ministro destacou que Bolsonaro mesclou a reunião com os embaixadores com elogios a si próprio e a seu governo; relato sobre ataque hacker às redes do TSE; críticas à atuação de servidores públicos; ilações a respeito de ministros da Corte Eleitoral; supostas conspirações para a hipótese em que seu principal adversário viesse a ser eleito; exaltação às Forças Armadas; defesa do voto impresso e crítica às missões de observação eleitoral; e suposta manipulação de votos em 2018, havendo risco de repetição no pleito de 2022.
Sobre o discurso de Bolsonaro na reunião, o ministro destacou que ele “fez uso de estratégias comunicacionais que podem ser facilmente percebidas. Diversas partes do discurso revelam que sua fala merecia mais confiança do que as divulgadas pelo TSE”. Na ocasião, Bolsonaro citou o inquérito policial 1361 da Polícia Federal sobre ataque hacker ao TSE, passando a “performar um risco e como se fosse demandar esforços para impedir o comprometimento das Eleições de 2022”. O ministro lembra que, em 2021, Bolsonaro já havia falado acerca desse inquérito em live ao lado do deputado federal Filipe Barros. No dia seguinte, o TSE divulgou nota à imprensa assegurando que o acesso indevido ao objeto da investigação não representou risco às eleições.
Segundo o relator, o último marco temporal diz respeito ao futuro, quando Bolsonaro desenha a possibilidade de não aceitação dos resultados de 2022 caso não satisfeitas as condições que caracterizava inegociáveis. Em seu voto, o ministro refutou ainda os argumentos da defesa que afirmam que a reunião com embaixadores tentou travar diálogo institucional saudável e respeitoso acerca do sistema eletrônico de votação; que todas as falas teriam visado melhorias; e que ele aceitaria o resultado das urnas eletrônicas. “Cada uma dessas narrativas possui caráter falacioso”, afirmou o ministro. Segundo ele, não há dúvidas de que Bolsonaro difundiu informações falsas para convencer a plateia de que havia fraude para assegurar a vitória de seu adversário político.
Correspondência dos fatos com as premissas
Na última parte de seu voto, Gonçalves apresentou a correspondência dos fatos com as premissas de julgamento. Segundo o ministro, foram analisadas a tipicidade, a gravidade qualitativa (grau de reprovabilidade), a gravidade quantitativa (repercussão do ato) e a responsabilidade pelo uso indevido dos meios de comunicação e por abuso de poder político.
Sobre o primeiro ponto, o ministro reforçou que, no evento com embaixadores, o discurso foi construído para difundir informações falsas com o intuito de convencê-los de que havia um grave risco de fraude nas Eleições 2022 e que ele, em simbiose com as Forças Armadas, estava em uma cruzada em prol da democracia do país. Gonçalves enfatizou que o encontro, organizado com a clara intenção de desqualificar o sistema eleitoral, foi transmitido ao vivo tanto pela TV Brasil quanto pelos perfis do político nas redes sociais, “alcançando ampla repercussão” e culminando na remoção do vídeo por iniciativa da plataforma YouTube.
O relator acrescentou que o candidato estava ciente da popularidade desse tipo de conteúdo na internet e utilizou a condição para gerar engajamento e manter uma mobilização política de caráter passional incapaz de aceitar contestações vindas de fora da bolha. “Assim, no que diz respeito à tipicidade, a conduta se amolda à difusão deliberada e massificada por meio de emissora pública e das redes sociais de severa desordem informacional sobre o sistema eletrônico de votação e sobre a governança eleitoral brasileira em benefício de candidatura dos investigados”, afirmou.
Quanto ao abuso de poder político, o corregedor-geral afirmou que, além do emprego de bens e serviços públicos, o que tornou a conduta de Bolsonaro “aberrante” foi o uso do poder simbólico de presidente da República e da posição de chefe de Estado para “degradar o ambiental eleitoral”. De acordo com o ministro, ao proferir falas sem qualquer embasamento técnico com o único objetivo de confrontar o TSE, ele violou ostensivamente as obrigações de presidente da República listadas na Constituição Federal, em especial o dever de zelar pelo livre exercício dos Três Poderes, pelo exercício dos direitos políticos e pela segurança do país.
O ministro destacou que, de forma intencional, o político desprezou o “farto material” produzido pelo Tribunal sobre o funcionamento das urnas, checagens publicadas na página Fato ou Boato e achados no inquérito policial, optando por exercitar, perante os chefes das missões diplomáticas, a mesma prática discursiva utilizada em lives para reafirmar a desconfiança infundada na atuação da Corte Eleitoral.
“Assim, também se conclui pela ocorrência do abuso de poder político, praticado de forma pessoal por Jair Messias Bolsonaro, que concebeu, definiu e ordenou que se realizasse, em tempo recorde, evento estratégico para sua pré-campanha, no qual fez uso de sua posição de Presidente da República, de chefe de Estado e de ‘comandante supremo’ das Forças Armadas para potencializar os efeitos da massiva desinformação a respeito das eleições brasileiras apresentada à comunidade internacional e ao eleitorado”, assentou.
Preliminares
Benedito Gonçalves começou o voto nesta terça analisando questões preliminares de cunho processual no julgamento da Aije, que normalmente são apreciadas antes do início do exame do mérito da ação. Todas foram rejeitadas por ele. Segundo o relator, as preliminares não merecem ser conhecidas, pois já foram rejeitadas em decisões referendadas em Plenário.
O relator explicou que, embora a minuta do voto contenha 382 páginas, com o objetivo de agilizar o julgamento, optou por apresentar aos ministros na sessão apenas um resumo, com referência aos votos originários, títulos e pontos principais, sendo estruturado em três partes: premissas de julgamento, fixação da moldura fática e subsunção dos fatos às premissas.
Ele reiterou que o julgamento deste “caso paradigmático” é uma boa hora para o debate sobre temas de primeira ordem do processo eleitoral democrático. Nesse sentido, afirmou que o estudo do caso foi feito com rigorosa análise de todas as provas produzidas, o que conduz a um voto analítico “que poderá contribuir para a compreensão dos recentes acontecimentos na nossa história político-eleitoral recente”.
Entre as preliminares analisadas e rejeitadas, está a que questionava a competência do TSE para julgar o feito. Quanto a esse ponto, o ministro lembrou que, em dezembro de 2022, por entendimento unânime, a Corte assentou a competência eleitoral para julgar o caso. Outra preliminar não conhecida foi a que apontava a existência de ilegalidade da inclusão, nos autos da ação, da minuta de decreto de estado de defesa na residência do ex-ministro da Justiça Anderson Torres.