O conjunto formado por 25 cartas escritas e assinadas pelo ex-presidente Getúlio Vargas e endereçadas ao seu irmão Protásio Vargas, revelado por GZH, abrange o período correspondente à Era Vargas (1930-1945), uma época conturbada da política brasileira. A ascensão de Getúlio Vargas ocorreu como consequência da Revolução de 1930, que destituiu Washington Luís, além de impedir a posse do paulista Júlio Prestes, presidente eleito que assumiria o Brasil.
O material ao qual a reportagem teve acesso traz menções a um dos episódios mais obscuros daqueles tempos — uma tentativa de vingança de familiares de Getúlio ao jornalista Jovelino de Oliveira Saldanha, na fronteira entre Brasil e Argentina, em 1933, que deixou três mortos —, além de referências à prisão de Luís Carlos Prestes, a uma partida de golfe jogada em um domingo de lazer, à vida simples no campo e a diversos outros temas.
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O professor Pedro Cezar Dutra Fonseca, do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisa e escreve sobre o pensamento econômico e político de Getúlio Vargas há 43 anos. Fonseca, que garante ter lido tudo o que Vargas escreveu em vida, também encontrou material inédito no passado, como as provas feitas em aula pelo ex-presidente quando este ainda era estudante da Faculdade de Direito da UFRGS.
— Desse período (1933, quando houve o incidente na Argentina), não temos muito material. Como era uma época autoritária, o que se tem são notinhas de jornais — relata, salientando que, em cartas, os presidentes costumam contar e abordar temas que não revelavam durante um discurso ou entrevista.
Em relação aos impactos que o novo material poderá causar, será necessário aguardar a exibição do conjunto de cartas.
— É difícil, hoje, ter coisas supernovas sobre Vargas. Porque há os diários, as provas, as cartas do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil) e as pesquisas. Mas pode ter, e é ótimo que tenha — resume.
O historiador e ex-secretário da Cultura de Porto Alegre Gunter Axt cita a transformação de Vargas de um líder regional para uma liderança nacional e até problemas graves envolvendo seus familiares em São Borja como fatores relevantes para o período.
— A partir de 1927, tem-se uma construção de Vargas, que se afirma rapidamente como liderança regional e se converte em líder nacional. Foi algo quase meteórico — analisa.
Em 1930, quando Vargas assumiu o governo provisório do país, toda a sua família ganhou projeção nacional. Para o ex-secretário, "naquela época, o indivíduo era também a sua clã e família".
A partir de 1927, tem-se uma construção de Vargas, que se afirma rapidamente como liderança regional e se converte em líder nacional. Foi algo quase meteórico. Ele contava com uma retaguarda coronelística da família, que, ao mesmo tempo, criava problemas e era complicada.
GUNTER AXT
Historiador e ex-secretário da Cultura de Porto Alegre
— Ele contava com uma retaguarda coronelística da família, que, ao mesmo tempo, criava problemas e era complicada — explana Axt.
De acordo com o historiador, a maior parte dos jornais do período era ligada aos partidos políticos.
— Os jornalistas eram polemistas mais preocupados em destruir reputações do que construir um processo informativo. Às vezes, os textos eram exagerados; noutras, denunciavam situações que mereciam ser denunciadas e estavam abafadas — comenta.
Sobre o caso específico do jornalista Jovelino de Oliveira Saldanha, que acusava a família Vargas de contrabando, a situação não representava algo incomum.
— Realmente, essas famílias da fronteira se envolviam, de um jeito ou de outro, com o contrabando. Essas denúncias eram bastante frequentes — compartilha Axt.
A professora aposentada do Departamento de Ciência Política da UFRGS Maria Izabel Noll menciona que o arquivo de Vargas começou a ser mais organizado e controlado a partir do momento em que Alzira Vargas (filha do ex-presidente) se transformou em secretária dele.
— É muito importante a gente entender a carta dentro do contexto em que ela se coloca. Em 1933, há a questão da fronteira, onde existia censura e controle bárbaro sobre os exilados. As cartas eram enviadas pelos exilados por código — detalha.
A censura predominava, sobretudo quando o assunto envolvia perseguidos políticos.
— A conjuntura em 1933 era complicada e havia muita censura. Eles (censores) pegavam as cartas que os exilados mandavam para os seus amigos e parentes — revela.
Na invasão da família a Santo Tomé, onde mataram gente, tudo foi acobertado. O que me chama a atenção é por qual motivo as cartas ficaram desgarradas. Será que tinha alguma questão familiar envolvida?
MARIA IZABEL NOLL
Professora aposentada do Departamento de Ciência Política da UFRGS
Para Maria Izabel Noll, o memorando do Ministério das Relação Exteriores junto às cartas representa um indicativo fundamental sobre a autenticidade e a relevância das correspondências:
— Isso juntava o Ministério das Relações Exteriores. Eles (censores) vigiavam aquela região da fronteira barbaramente. Houve crimes e o assassinato do Waldemar Ripoll, que era um jornalista importante e foi morto a machadadas enquanto dormia, em 1934. Todo mundo sabia que foi o pessoal do Flores da Cunha que o matou em Rivera.
A educadora aposentada diz que Protásio era o irmão com o qual Vargas mais se relacionava. E confirma que o incidente de Santo Tomé foi encoberto pelo governo.
— Na invasão da família a Santo Tomé, onde mataram gente, tudo foi acobertado — assegura, dizendo que as cartas em questão podem ter ficado extraviadas durante essas nove décadas. — O que me chama a atenção é por qual motivo as cartas ficaram desgarradas. Será que tinha alguma questão familiar envolvida?
Itens pessoais também são pesquisados
Também estão sendo pesquisados em Porto Alegre alguns itens pessoais pertencentes a Getúlio Vargas. Ao contrário das cartas, essas peças não possuem o caráter inédito e foram doadas em sua maioria por Alexandra Manuela Vargas Hamilton, bisneta do ex-presidente, ao acervo do Museu Cônego Hugo, em 1988.
Entre os objetos, estão um chapéu de feltro preto, contendo as iniciais de Vargas em sua parte interna; um tintureiro, uma caneta antiga de bico de pena da marca Zenith 101 (de 19,2cm), e um timbre com brasão para carimbar cartas e documentos.
Além disso, uma escultura de Vargas a cavalo esculpida em bronze (de 1937), um busto dele (1943) e um quadro integram o conjunto das peças, que ainda conta com uma planta da Fazenda do Itu, uma caixa porta-charutos e revistas da época sobre o presidente. Em relação ao chapéu, onde também estão escritas as palavras "Prada Luxo" e "Chapelaria Ópera Rio", o professor Edison Hüttner, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), descobriu durante sua pesquisa que o acessório já passou por reforma antes.
Um dos objetos é conhecido como bengala de assento de golfista. Foi doado ao museu, assim como o porta-charutos, por Lutero Vargas (filho mais velho do líder do país). Para ser utilizada em partidas de golfe, a peça possui 85cm de altura em alumínio e detalhes em couro.
Exposição
- As cartas serão exibidas ao público, a partir das 16h de 30 de maio, no Museu de Ciências e Tecnologia da PUCRS. A exposição, que será em parceria com a prefeitura de São Francisco de Assis e o Museu Cônego Hugo, se estenderá até 30 de setembro de 2023.