Um conjunto formado por 25 cartas promete lançar luzes sobre um dos episódios mais obscuros da Era Vargas (1930-1945). Trata-se da tentativa de vingança de familiares do então presidente Getúlio Vargas ao jornalista Jovelino de Oliveira Saldanha, em Santo Tomé, cidade da província de Corrientes, na fronteira entre Brasil e Argentina. O incidente ocorrido há 90 anos deixou três mortos (sendo dois sobrinhos do mandatário) e gerou uma crise na política externa brasileira com o país vizinho. A reportagem de GZH teve acesso ao material inédito e revela o conteúdo dessa história recheada de vingança, tiros e morte.
Além disso, na troca de mensagens entre o homem mais poderoso do país e seu irmão Protásio Vargas, há referências à prisão de Luís Carlos Prestes, a uma partida de golfe jogada em um domingo de lazer, à vida simples no campo e a diversos outros temas.
— O ponto principal dessas cartas trata da perseguição ao jornalista Jovelino de Oliveira Saldanha, que estava em Santo Tomé, na Argentina. O episódio é muito significativo na História do Brasil — afirma o professor Edison Hüttner, do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
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Em 2020, as 25 cartas (pertencentes ao exato período de 1931-1946) foram doadas em anonimato por uma pessoa ao Museu Cônego Hugo, de São Francisco de Assis, na Fronteira Oeste, onde permaneceram guardadas em uma pasta. Inicialmente, foi realizado o registro de entrada da doação para a coleção Getúlio Vargas do próprio museu.
Ao estudar peças de arte sacra missioneira no museu, o docente teve contato com as cartas, que somam 84 laudas no total (sendo 67 manuscritas), e pediu para pesquisar o material em Porto Alegre. E a conclusão é que foram escritas e assinadas por Vargas.
— Nas cartas, Getúlio escreve para Protásio perguntando o que aconteceu na fronteira com a Argentina — contextualiza Hüttner, que desenvolve o trabalho com o auxílio da pesquisadora Fabiana Ciocheta Mazuco.
O incidente da fronteira é abordado em quatro cartas e mais um memorando. Este último mostra a solicitação do ministro das Relações Exteriores da época, Afrânio de Melo Franco, datada de 14 de novembro de 1933, que pediu a prisão preventiva do jornalista na Argentina. Durante a investigação, Hüttner identificou até a marca d'água no papel, onde é possível ler as palavras "Ministério das Relações Exteriores".
— A primeira parte da pesquisa serviu para a identificação do conteúdo das cartas. Essas correspondências participaram desse contexto. Agora vamos ver as outras fontes relacionadas ao fato, sejam na Argentina ou em outros documentos — pontua o historiador.
Quinze cartas foram doadas já com a transcrição datilografada do texto. O acontecimento na fronteira, por exemplo, transcorre por 21 laudas na soma do material. A troca de mensagens entre Vargas e o irmão é um campo vasto para se entender melhor o que houve naquela data de 1933, quando três pessoas perderam a vida.
Autenticidade comprovada
As cartas foram submetidas a testes de ressonância magnética no Instituto do Cérebro (InsCer) da PUCRS, para que possíveis fraudes fossem identificadas. Estão em estado razoável de conservação, com marcas amareladas pela passagem do tempo, e possuem também o Brasão de Armas da Presidência da República. Não há rasuras que impeçam a interpretação de algum trecho.
— As cartas são autênticas e até hoje nunca soube ou vi uma exposição com essas — diz.
Vargas menciona também outros assuntos da política nacional. Além da referência ao episódio ocorrido na fronteira, há uma carta do presidente com menção a Luís Carlos Prestes com data de 27 de março de 1936. Nela, Vargas fala para o irmão Protásio que Prestes foi detido com um suposto plano para implementar um novo movimento de subversão comunista no país (veja abaixo).
As cartas são autênticas e até hoje nunca soube ou vi uma exposição com essas.
EDISON HÜTTNER
Professor do Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS
— Essa carta diz que acharam um documento que mostrava um complô para um novo movimento comunista — confirma o pesquisador.
Essa carta tem 20,5cm de largura por 26,2cm de comprimento. Vargas usou a frente e o verso da lauda para se corresponder com o irmão. Trata-se do episódio da detenção de Prestes, junto com sua mulher, a alemã judia Olga Benário, e a empregada da casa. Aquela foi a última vez que o Cavaleiro da Esperança, como ficou conhecido, viu a esposa então grávida.
O presidente de honra da Aliança Nacional Libertadora (ANL) ficou preso por nove anos, enquanto Olga foi enviada para os campos de concentração nazistas da Alemanha. A filha, Anita Leocádia Prestes, nasceu quando a mãe estava presa em Berlim. O bebê foi entregue para os familiares de Olga, que foi executada na câmara de gás, em abril de 1942, no campo de concentração de Bernburg.
Em uma passagem da mesma carta sobre Prestes, Vargas diz que se sente só como "carancho em tronqueira", termo que inclusive sublinhou. Nas demais cartas, Vargas ainda comenta sobre assuntos triviais relacionados à pecuária e atividades do campo; e até acerca de uma partida de golfe, disputada em 4 de março de 1945, na Fazenda Santo Antônio, do amigo Argemiro Machado, localizada em Petrópolis, município da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Porém, o tiroteio na fronteira predomina nas cartas dos irmãos.
— Me chamou a atenção que a maioria dessas cartas mostre a relação do Getúlio Vargas com esse conflito na Argentina. São uma nova peça no mosaico da construção da História — reflete o pesquisador, não afastando a possibilidade de outras aparecerem no futuro.
Ineditismo em 23 documentos
Para atestar a originalidade das cartas, Hüttner vasculhou o acervo digital do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas. Das 25 cartas, só duas possuem cópias no acervo, o que evidencia o ineditismo das demais 23 correspondências.
— As cartas do caso de Santo Tomé não revelam que Getúlio Vargas mandou capturar o jornalista. O presidente ficou sabendo depois pelas informações recebidas por telégrafo e pelas cartas de Protásio — esclarece o pesquisador, salientando que o então chefe do Executivo nacional critica o que considerou uma ação inconsequente.
Apenas uma das cartas não foi trocada diretamente com o presidente, sendo uma correspondência de seis laudas enviada do Hotel Glória, no Rio de Janeiro, por João Neves da Fontoura (embaixador do Brasil em Lisboa de 1943 a 1945) para Protásio Vargas, datada de 4 de março de 1945.
Outra curiosidade é que há marcas d'água em algumas correspondências da antiga empresa britânica Waterlow & Sons Limited, conhecida por impressões de segurança. Além dessa, é possível vislumbrar marcas da Royal Bucks Vellum e da Dandy Ledger.
Em termos acadêmicos e científicos, que isso possa inclusive contribuir para demarcar o que foi feito na História do Brasil.
JONATHAN VARGAS
Bisneto de Getúlio Vargas
Para Jonathan Vargas, bisneto do ex-presidente, a descoberta das cartas deve ser enaltecida.
— Quando surgem coisas novas ficamos na expectativa de desbravarmos mais ainda a figura dele a partir de algum fato novo — observa Jonathan, que tem 32 anos e atua na advocacia.
Para o bisneto de Getúlio e neto de Manuel Antônio Sarmanho Vargas, conhecido como Maneco Vargas, expor o que foi encontrado será muito importante para os pesquisadores poderem estudar o material.
— Em termos acadêmicos e científicos, que isso possa inclusive contribuir para demarcar o que foi feito na História do Brasil — pondera Jonathan, que também é filiado ao PSOL desde 2016.
Exposição
- As cartas serão exibidas ao público, a partir das 16h de 30 de maio, no Museu de Ciências e Tecnologia da PUCRS. A exposição, que será em parceria com a prefeitura de São Francisco de Assis e o Museu Cônego Hugo, se estenderá até 30 de setembro de 2023.