Em torno das 20h30min de 15 de outubro de 1933, Benjamin Vargas, conhecido como Bejo, irmão mais novo do então presidente da República Getúlio Vargas, partiu de São Borja acompanhado de homens armados na lancha Dois Ases. O grupo atravessou o Rio Uruguai e se dirigiu até Santo Tomé, no país vizinho.
Por solicitação do vice-cônsul brasileiro, Lúcio Schiavo, a subprefeitura marítima da localidade argentina havia autorizado o desembarque noturno, fora do horário de funcionamento. A explicação dada para entrar em Santo Tomé era assistir a uma fita sonora de um filme no Cine Astral, uma desculpa que ocultava a verdadeira intenção do grupo. O objetivo de Bejo era entrar em Santo Tomé para se vingar do jornalista Jovelino de Oliveira Saldanha, inimigo político da família Vargas que vivia exilado na Argentina.
O que se desenrola a seguir é um dos episódios mais obscuros da Era Vargas (1930-1945) e o principal tema abordado em um conjunto de 25 cartas escritas e assinadas pelo ex-presidente Getúlio Vargas para seu irmão Protásio Vargas. A reportagem de GZH teve acesso ao material inédito e revela o conteúdo dessa história que deixou três mortos e gerou uma crise na política externa brasileira.
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O jornalista Jovelino de Oliveira Saldanha era crítico dos Vargas, aos quais acusava de serem contrabandistas de entorpecentes. Ainda no Brasil, escrevia no jornal A Fronteira, de Uruguaiana, do qual era o diretor. Ali, desencavou e publicou reportagens que trouxeram a público os assassinatos de duas pessoas envolvendo o irmão mais velho de Getúlio, Viriato Vargas.
Jovelino foi ameaçado de morte e precisou trocar o Brasil pela Argentina, onde se refugiou. Naturalizou-se argentino e começou a assinar os textos como Jovelino D'Oliveira Saldaña.
As críticas e denúncias persistiram, agora no diário El Pueblo, de Santo Tomé, pertencente a J. Iturriaga. A embarcação com o grupo comandado por Bejo era conduzida pelos navegadores e imigrantes alemães Georg e Josef Rosembeck, que ganhavam a vida fazendo a travessia no local. Cerca de 10 pessoas estavam a bordo, sendo que Bejo trajava uniforme do 14º Corpo Auxiliar da Brigada Militar de São Borja. E estava armado.
Outros parentes do presidente acompanhavam no barco: os sobrinhos Ary Mesquita Vargas (filho de Protásio) e Odon Sarmanho Mota. Houve um desentendimento quando o cabo argentino Francisco Verón foi acompanhado do marinheiro Narciso Nuñez receber os visitantes. Verón teria questionado a Bejo o que este carregava sob uma capa militar que levava no braço. Os visitantes teriam que se submeter à revista obrigatória e, se houvesse armamento, seria confiscado. Os ânimos se alteraram com xingamentos e bate-boca.
Na sequência, Odon teria saltado na direção de Verón. Na confusão, o argentino caiu e, apesar de escapar do tiro à queima-roupa de Odon, foi dado como morto no calor do momento. Naquele instante, Nuñez percebeu que Bejo mantinha uma metralhadora escondida. O marinheiro apagou o lampião que carregava e correu para o porto da guarda a fim de dar o alarme aos colegas sobre a confusão. Teve início, então, um intenso tiroteio, inclusive com Bejo disparando com a metralhadora. Verón recuperou os sentidos, levantou-se e saiu em meio ao fogo cruzado.
Odon foi o primeiro a ser atingido e caiu morto. Ary Mesquita Vargas também foi morto, com um tiro na testa, ao regressar à lancha, enquanto o piloto Georg foi baleado no peito. Além disso, um tiro acertou o tanque de combustível, que explodiu e ocasionou um incêndio na lancha. Se Georg morreu pelo tiro ou queimado após a explosão, ninguém pôde atestar.
— Quando chegaram lá, a guarda de Santo Tomé viu que eles estavam armados e disse que não poderiam entrar. O Benjamin se sentiu ofendido e começou um tiroteio — conta o professor Edison Hüttner, do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Conflito diplomático
Com as chamas na lancha, os brasileiros fugiram a nado pelo Rio Uruguai. O então intendente de São Borja, Cleto Dória de Azambuja, comunicou o ocorrido ao interventor gaúcho Flores da Cunha. Com três mortes, o incidente rapidamente mobilizou os governos dos dois países, causando uma celeuma diplomática internacional.
Em Buenos Aires, o vice-presidente em exercício, Julio Argentino Roca, reuniu-se de forma emergencial com os ministros do Interior, Exterior, Guerra e Marinha, para discutir o caso. O embaixador argentino no Brasil, Ramón José Cárcano, foi recebido por Getúlio Vargas para tratar de informes recebidos pelo serviço de inteligência de seu país. Entre os assuntos, estava até o intercâmbio de armas entre os batalhões provisórios gaúchos e a guerrilha argentina. Segundo os informes oficiais, o 14º Corpo Auxiliar da Brigada Militar de São Borja, comandado pelo coronel Benjamin Vargas, estaria envolvido em complô com os montoneros radicais da União Cívica Radical, que preparava ataques a cidades argentinas.
Bejo se apressou em construir a versão de que os agentes argentinos teriam confundido os visitantes com contrabandistas. Por ordem dos censores do governo brasileiro, os jornais da época adotaram a tese do ataque e minimizaram o fato, esfriando as repercussões do incidente internacional.
Mas o episódio não terminou ali. Em dezembro de 1933, o chefe da guarda pessoal de Vargas, Gregório Fortunato, auxiliado pela BM são-borjense e por montoneros radicais, invadiu Santo Tomé para vingar os sobrinhos de Vargas mortos. Bejo não participou dessa ação em pessoa, mas liberou seus homens para a invasão. Houve mortes de policiais e civis, além de saques.
Dica de leitura
- Quem deseja se aprofundar no assunto pode procurar o livro 1933: A Invasão de Santo Tomé, de Iberê Athayde Teixeira, ou então Getúlio (1930-1945): Do Governo Provisório à Ditadura do Estado Novo, de Lira Neto.
Exposição
- As cartas serão exibidas ao público, a partir das 16h de 30 de maio, no Museu de Ciências e Tecnologia da PUCRS. A exposição, que será em parceria com a prefeitura de São Francisco de Assis e o Museu Cônego Hugo, se estenderá até 30 de setembro de 2023.