Por Edson Luiz André de Sousa
Psicanalista, autor, entre outros livros, de “Furos no Futuro: Psicanálise e Utopia” (2021)
Todo ato de violência é um fracasso da linguagem, e sem linguagem não há pacto civilizatório possível. A palavra é uma espécie de dobradiça no mundo através da qual podemos encontrar nossos semelhantes naquilo que nos aproxima e nos distancia. O que vimos em Brasília no dia 8 de janeiro foi um esquartejamento desse tecido da linguagem que nos protege dos radicalismos que levam à barbárie. O Brasil e o mundo testemunharam uma destruição insana que, em poucos horas, tentou fazer terra arrasada não só no prédios dos três poderes , nos móveis e objetos de arte, mas na memória e na história que cada um deles carrega. Depois de toda destruição, precisamos recolher as cinzas, guardá-las e fazer um inventário desses restos, pois será o registro desta memória que nos permitirá abrir novos futuros. Sabemos bem que a memória também é um campo de disputa. Apesar da evidência escancarada da responsabilidade do que vimos, não faltaram narrativas mentirosas sobre o enredo desse horror.
Neste momento, estou longe do Brasil, tentando abrir espaço para outras imagens, palavras e pensamentos que por vezes uma viagem e suas distâncias nos permitem. Mas viajamos sempre com nossa bagagem de memórias, de origens, e, assim, como um bumerangue, voltamos imediatamente para o ponto de partida quando uma urgência aparece. É uma forma de se reorientar diante de alguma desordem que encontramos no caminho. Alguns monstros entram em nossas casas disfarçados, à noite, quando estamos dormindo. Outros arrombam a porta em plena luz do dia, sem máscara, selvagens, e destroem tudo que veem pela frente. A história da humanidade está repleta dessas histórias de destruição. Mas basta retomar a leitura de Freud, em seu ensaio Psicologia das Massas e Análise do Eu, para constatarmos a que grau de insanidade um grupo de pessoas é capaz quando se deixa contaminar por líderes que espalham vapores de ódio, anulando o freio crítico e civilizatório que garante que a vida seja possível em comunidade. Temos sempre, como sociedade, o desafio de responder a pergunta de Barthes: como viver juntos?
Foi uma destruição com método. Entraram com facilidade quebrando portas e janelas e, como tratores humanos, tentaram destruir o curso da história. Uma tentativa de ferir a democracia com as sete furiosas estocadas na tela As Mulatas, de Di Cavalcanti. Essa grande pintura de 1962 foi concebida especialmente para o Palácio do Planalto. Testemunhamos um ataque direto à História do Brasil, a nossa cultura e valores, à nossa beleza, ao nosso patrimônio. O simples prazer da destruição para um gozo sem horizonte, para um gozo com a morte. Trata-se, portanto, de uma necropolítica, que mostrou seus dentes, suas garras, seu desprezo pela vida e pela memória. Contudo, já estávamos vivendo dentro dessa lógica nas centenas de milhares de pessoas que morreram na pandemia pelo obscurantismo assumido de forma convicta pelo governo federal. E, se não bastasse o rastro de destruição, querem voltar a cena pela porta dos fundos, como fantasmas querendo se impor pelo terror, pela ameaça e pela força. Poderíamos nos deter em centenas de imagens e fazer uma autopsia do rastro de destruição que aconteceu neste dia 8. Abordarei brevemente algumas delas.
A destruição de um relógio criado pelo relojoeiro francês Balthazar Martinot, fabricado no século 17 e doado pela corte real de Luis XIV a Dom João VI, que o trouxe ao Brasil em 1808. Há apenas dois exemplares no mundo. Agora só vai restar um, no Palácio de Versailles, na França. Em um gesto de fúria, séculos de história estilhaçados no chão, como se fosse possível apagar o tempo da história. Sabemos o quanto os tiranos temem os novos futuros, que, se são autênticos, nos abrem novas perguntas e esperanças. Essa destruição é sem esperança. Ela aniquila a história, a cultura e a memória. O relógio partido será uma peça chave no memorial que vamos precisar compor com estes restos.
Outra menção que anoto aqui com grande pesar é a destruição de uma escultura de parede do artista Frans Krajcberg, de origem polonesa e naturalizado brasileiro. Esta obra tem o sugestivo titulo Galhos e Sombras e data de 1963. Krajcberg lutou na Segunda Guerra Mundial e participou da tomada de Berlim com os soviéticos. Chegou ao Brasil em 1948 e dedicou toda uma vida artística fascinado pela natureza no país. Sua obra sempre esteve atenta à defesa das florestas e dos territórios indígenas. Assim, podemos perceber o que significa simbolicamente mais essa violência, como se perdêssemos mais uma floresta. Krajcberg lembra, em alguns depoimentos, que ao ver uma árvore calcinada lembrava sempre da família que perdeu também calcinada nos campos de concentração nazista. Esse detalhe evidencia o valor testemunhal de cada uma de suas obras.
O inventário é imenso, e dói fazer registro de cada uma delas: O Flautista (1962) de Bruno Giorgi, escultura de bronze completamente destruída; A Bailarina (1920) de Victor Brecheret, escultura arrancada do pedestal e jogada ao chão; Bandeira do Brasil (1995), pintura de Jorge Eduardo que foi encontrada boiando n’água; Muro Escultórico (1976), de Athos Bulcão especialmente produzido para a Câmara do Deputados, perfurado em sua base; vasos de porcelana chineses e húngaros quebrados; móveis do século 19 e um tapete que pertenceu a Princesa Isabel danificados; além de muitas peças que sumiram na galeria de relíquias presenteadas por chefes de Estado.
Um domingo que tentou apagar o tempo e o espaço de um Brasil que sai muito ferido. Mas o tempo e o espaço resistem à fúria da massa de insanos. A teia da linguagem vai precisar ser recomposta, como evoca Primo Levi, sobrevivente dos campos nazistas, no poema intitulado Aracne, no qual escreve: “...E tecerei outra teia, conforme aquela que você rasgou, passante, conforme o projeto impresso na fita mínima de minha memória”.
Vamos precisar criar um memorial da destruição para que nosso tempo e o tempo das novas gerações que virão saibam o que foi este 8 de janeiro e que possamos voltar a sonhar com um Brasil em que democracia, cultura, arte, florestas e a linguagem sejam valores inegociáveis.