Por Cláudio Martinewski
Desembargador e presidente da Associação dos Juízes do Estado do RS (Ajuris)
Os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023, em Brasília, entram para a história do Brasil como a versão piorada da invasão do Capitólio norte-americano.
Foi o desdobramento do que vinha sendo gestado, por setores da população, de grave afronta ao Estado Democrático de Direito, que, neste episódio, ultrapassou os limites da sua autodeclaração de se constituir como grupo mobilizado para o exercício da liberdade de expressão e de reunião, garantidos pela Constituição, para caracterizar atos passíveis de condutas descritas nos tipos de leis penais vigentes.
Na sua gênese, há um misto de exploração da ignorância do cidadão comum e patrocínio de interesses escusos, na tentativa de legitimar o movimento por uma “intervenção” que levaria à tomada do poder político diretamente pela população envolvida, que se auto-atribuiu soberania para, na sequência, entregá-lo, ora ao Poder Executivo – antes da posse do atual presidente –, ora às Forças Armadas, sob variados argumentos: desequilíbrio entre os poderes, defesa da pátria, garantia da lei e da ordem, fraude nas eleições etc., com assento no art. 142 da Constituição Federal.
No entanto, é preciso reafirmar, com o vigor que emana da ciência jurídica e das instituições de Estado, que o Estado Democrático de Direito, conforme doutrina consagrada universalmente, está dentre o mais significativo legado da filosofia política e tem como princípio inspirador a subordinação de todo o poder – civil, militar e político –, em todos os níveis, ao Direito, o que lhe confere o caráter de racionalidade e legalidade, cuja legitimidade repousa exclusivamente no exercício do poder em conformidade com a Constituição e as leis.
A intervenção é instituto constitucional restrito, conferido à União (art. 21, V) e aos Estados-membros (art. 35), em hipóteses taxativas (arts. 34 e 35 em seus incisos), que, quando exercitada, é feita em ritual próprio que impõe declaração especificada da amplitude material, prazo definido e as condições de execução, sendo submetida à apreciação do Poder Legislativo no prazo de 24 horas.
Em nenhuma delas há previsão de intervenção em decorrência de desequilíbrio entre os poderes da União, à medida que são independentes e harmônicos entre si (art. 2) e, acima deles, constitucionalmente, inexiste outro poder a quem se atribua a condição de árbitro do desequilíbrio.
A ideia de que caberia às Forças Armadas, por força do art. 142 da Constituição, ser o poder moderador para arbitrar o desequilíbrio, é um entendimento equivocado e retrógado, como afirmado pelo meio jurídico responsável, e em especial pelo Supremo Tribunal Federal (STF), legítimo guardião da Carta (art. 102). O STF inclusive já se manifestou a respeito quando julgou o Mandado de Injunção nº 7.311, datado de 10 de junho de 2020.
Como decorre do próprio sistema de separação de poderes, idealizado para a garantia das liberdades, o que vigora como mecanismo de equilíbrio é o checks and balances system, exposto por James Madison no The Federalist e consolidado na experiência do sistema constitucional norte-americano. O mecanismo de freios e contrapesos, ao atribuir o controle recíproco entre Executivo, Legislativo e Judiciário, resta por marcar a interdependência e a cooperação, próprios da unidade estatal.
E é exatamente o que ocorre quando o presidente sanciona ou veta leis aprovadas no âmbito do Poder Legislativo (arts. 66 e § 1º, 84, IV e V) ou faz a indicação dos ministros do Supremo (art. 84, XIV, e 101, parágrafo único). E o Legislativo, quando aprova ou rejeita as leis, inclusive de iniciativa dos demais poderes (arts. 48 e 61), julga os impeachments contra o chefe do Executivo ou membros do STF (art. 52, I e II) e aprova o orçamento que condiciona a remuneração de todos os membros de poderes e de seus servidores (art. 48, II e XV). Por sua vez, ao STF e ao Poder Judiciário competem, de modo geral, o controle da constitucionalidade e da legalidade dos atos praticados pelo Executivo e pelo Legislativo (art. 97, 102, I, alínea “a”) e a apuração do resultado das eleições nos referidos poderes (art. 121 e Lei 4.737/65).
Assim, nada mais atual do que o assinalado no mandado de injunção acima referido de que nenhum elemento de interpretação – literal, histórico, sistemático ou teleológico – autoriza dar ao art. 142 da Constituição Federal o sentido de que as Forças Armadas teriam uma posição moderadora hegemônica, soando ofensivo a interpretação de que possam levá-las à quebra da institucionalidade, à interferência política e ao golpismo.