Por Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr. e Robson de Freitas Pereira
Psicanalistas, membros da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa)
Os acontecimentos do último domingo (8), com sua carga de violência e de destruição, seguidos das reações ao longo da semana, demonstraram que a democracia é uma construção permanente. Garantir a sua persistência, atravessando suas fragilidades e superando os seus ataques, é uma responsabilidade pessoal e coletiva.
Freud, em Mal-estar na Cultura, escreveu que uma das três grandes fontes de sofrimento é a relação entre os humanos. A vida em comunidade, aceitando regras que inibem a barbárie, é uma das situações mais difíceis de se lidar. No entanto, sem essa tensão permanente, não estaríamos aqui. A civilização não existiria.
Só para nos lembrarmos, desde sua invenção, na Grécia do século 5, a democracia foi alvo de ataques. Afinal tratava-se de um escândalo, pois propunha uma igualdade de direitos (isonomia) que ofendia as classes dominantes da época. Péricles tentou ampliar a natureza popular do regime democrático. Não lhe faltou oposição. Qualquer semelhança com nossa atualidade não parece ser coincidência.
Nossas eleições mais recentes foram o ponto culminante desse conflito entre autoritarismo e democracia. Desde o final de outubro, parte da população, sentindo-se injustiçada, não aceita o resultado das urnas e abertamente clama por um golpe militar que traria a restauração de valores que pensávamos estar superados desde as revoluções liberais dos EUA e França no século 18. Afinal, igualdade, fraternidade e liberdade são termos inseparáveis. Não há igualdade sem fraternidade, tampouco liberdade conjuga com violência, mas essa demanda por ditadura e a persistência de um fundamentalismo tem raízes profundas. Um fundamentalismo que quer obrigar os outros a seguirem um credo ultrapassado tem razões político-econômicas e, simultaneamente, subjetivas. Se não, como explicar a fantasia de que o mundo seria melhor se todos rezassem pelo mesmo livro, tivessem a mesma forma de gozar e fossem da mesma cor? Uma divisão psíquica possibilita que ideias paradoxais coexistam e que uma indiferença com o sofrimento alheio seja, aparentemente, suportável. Felizmente, essa fantasia totalitária tem seus limites. Vide o resultado das eleições presidenciais.
O desejo de felicidade e alegria persiste mesmo nos momentos mais sombrios. Sustentar essa possibilidade, sabendo que a construção é permanente, é o que nos permite vislumbrar um futuro que não seja construído com base no medo e no terror. O totalitarismo não entende que a democracia, sendo incompleta e frágil estruturalmente, tem nisso sua riqueza, seu potencial civilizatório. Com uma ética que sustenta o valor da palavra e das instituições criadas por nós, podemos assumir nossa responsabilidade junto aos outros.
Os vândalos responsáveis por depredarem nosso patrimônio, ao tentarem estabelecer o terror com essa insurreição golpista, buscavam tomar na marra aquilo que não conseguiram obter de forma legítima e republicana. Além de ser um flagrante ataque ao Estado democrático de direito, o rastro de destruição deixado atenta contra a cultura, o pacto social e a lei. O ódio materializado em seus atos exigia apenas destruir e exibir suas imagens, numa espécie de gozo morbidamente espetacular daqueles que pensam estar triunfando no caos. Ao se sentirem bem fazendo o mal, eles pretendem impedir o reconhecimento de alguns traços de valor simbólico que pensar a reconstrução de um país permite.
Certa vez, Freud chamou a atenção para o fato de que primeiro cedemos nas palavras, depois, nas coisas. No dia 8 de janeiro tivemos um claro exemplo disso; pois já deveria ter sido aplicada a lei há muito tempo neste país. Nos últimos anos, o ex-mandatário da nação, antes e enquanto presidente da República, pôde fazer e dizer o que bem entendesse, sem sofrer quaisquer consequências. Os exemplos são incontáveis, vamos nos deter em apenas dois. Primeiro, quando, em pleno Congresso Nacional, ele homenageia um torturador; segundo, quando imita, em frente às câmeras de televisão, as pessoas morrendo de falta de ar em decorrência da covid-19. Como alguém pode não se chocar com essas barbáries? O obsceno foi jogado na cena pública, buscando atingir o pudor de suas vítimas, arrombando o Estado e degradando a palavra a níveis impensáveis.
A consistência da jovem democracia brasileira está sendo posta à prova. Estamos diante de uma situação em que o laço social precisa ser restabelecido. Para tal, faz-se indispensável a aplicação da lei, o respeito às diferenças, à Constituição e às instituições. Não pode haver anistia para atos criminosos. A história já mostrou que anistiar os crimes cometidos pelos torturadores de qualquer ditadura não trouxe contribuição para o fortalecimento da democracia.