Apresentado no início de 2020 pelo deputado Paparico Bacchi (PL), um projeto de lei complementar que altera a Lei Kiss estadual está prestes a ser votado na Assembleia Legislativa. O objetivo da proposta é permitir que técnicos industriais de nível médio sejam responsáveis por projetos de Planos de Prevenção e Proteção contra Incêndios (PPCIs). Atualmente, a atribuição é restrita a engenheiros e arquitetos, profissionais de nível superior.
O texto estava apto a ser votado na sessão do dia 19, mas a apreciação foi adiada a pedido do autor, sobretudo em razão da resistência de entidades que representam os engenheiros e arquitetos. Embora siga na ordem do dia e possa ir ao plenário nesta terça-feira (26), a tendência é de novo adiamento.
Para tentar construir um acordo que viabilize a aprovação, Paparico protocolou uma emenda frisando que a atuação dos técnicos deve estar de acordo com normas federais que regulam a profissão. Entre elas, está um decreto de 1985 que limita a atuação dos profissionais a edificações de até 80 metros quadrados de área construída.
— A lei é boa, não ofende ninguém. Queremos que os técnicos possam se responsabilizar por projetos pequenos, de até 80 metros quadrados. Não sei se teremos clima para votar na terça, mas vamos trabalhar para que tenha — diz o deputado.
O deputado também ressalta que a iniciativa daria mais celeridade à emissão dos PPCIs no Estado. Uma estimativa preliminar aponta que cerca de três mil profissionais poderiam passar a fazer esse trabalho em caso de aprovação do projeto.
Conhecida popularmente como Lei Kiss, a legislação que estabelece normas sobre segurança, prevenção e proteção contra incêndios no Rio Grande do Sul foi aprovada pela Assembleia em 2013 e sancionada no mesmo ano pelo então governador Tarso Genro (PT). O texto foi elaborado a partir de discussões entre especialistas brasileiros e estrangeiros em uma comissão especial criada no parlamento.
A norma prevê que os PPCIs podem ser elaborados apenas por profissionais registrados junto ao Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea) ou ao Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU).
Na época em que a lei entrou em vigor, os técnicos ainda estavam vinculados ao Crea – desde 2018, respondem ao Conselho Regional dos Técnicos Industriais (CRT). Naquele período, eles emitiram Anotações de Responsabilidade Técnica (ARTs) para PPCIs. A ART indica o responsável técnico por um projeto e descreve os serviços prestados. O Crea sustenta que a emissão do documento por técnicos industriais constitui prática irregular, visto que apenas engenheiros e arquitetos poderiam emiti-lo, e anunciou que vai anular as ARTs lançadas por técnicos para edificações acima de 1 mil metros quadrados.
Presidente da comissão especial que elaborou o texto original, o ex-deputado Adão Villaverde (PT) rejeita a alteração proposta por Paparico e interpreta a iniciativa como uma tentativa de fragilizar a lei.
— Esse projeto é a ponta da cadeia de um desmonte maior que tem sido feito na Lei Kiss, que tirou o rigor de critérios, parâmetros e responsabilidades — acusa Villaverde.
Desde que foi sancionado, o texto da lei já sofreu mais de cem alterações, contabilizados os ajustes na redação. A maior parte das mudanças origina-se de uma lei aprovada em 2016 pela Assembleia (leia mais abaixo) e sancionada pelo então governador José Ivo Sartori (MDB).
Conflito profissional
Em paralelo à tramitação no Legislativo, a proximidade da votação suscitou um embate entre as categorias profissionais, com diferentes interpretações da legislação federal que regulamenta a atuação dos técnicos.
Quem lidera a mobilização contra o projeto de lei complementar é a engenheira Nanci Walter, presidente do Crea-RS. O principal argumento da entidade é que os técnicos não têm a capacitação necessária para assinar os PPCIs.
— O PPCI não é um simples formulário, ele reúne laudos muito complexos. Se o projeto passar, estaremos trazendo para a legislação profissionais que não estão habilitados para fazer esses projetos técnicos do PPCI — ressalta.
Nanci admite que, quando estavam ligados ao Crea, os técnicos emitiam as ARTs para os PPCIs, mas diz que faziam isso de maneira irregular. Segundo ela, a instituição "partia do princípio de que todos os profissionais utilizavam o sistema de acordo com sua capacitação".
— Estamos dispostos a dialogar mais sobre o projeto. Se não houver diálogo, o Crea vai buscar a judicialização, mas essa é a última coisa que queremos fazer — diz a engenheira.
Em contraponto, o presidente do Conselho Regional dos Técnicos Industriais do Rio Grande do Sul (CRT-RS), Ricardo Nerbas, diz que os profissionais têm competência para atuar na área e ressalta que a adição dos técnicos ampliará a concorrência na prestação desse tipo de serviço.
— Queremos o direito de atuar em pequenos serviços. No interior, em um clube, um boteco, um armazém que vende gás, por exemplo. Queremos fazer o que a lei nos permite — afirma.
Apesar de a votação estar prevista para esta terça, Nerbas diz que os técnicos desejam debater a proposta em uma audiência pública.
— Quando explicarmos nossas razões, a Assembleia vai aprovar esse projeto, porque ele é justo e é correto.
Na semana passada, o Crea-RS, o CAU-RS e outras sete entidades emitiram nota defendendo que o projeto de lei seja “rechaçado” pela sociedade gaúcha. Diretor do Sindicato dos Engenheiros do RS (Senge), uma das entidades que subscrevem o comunicado, o engenheiro João Leal Vivian afirma que a Lei Kiss seria fragilizada com a alteração.
— A Lei Kiss prevê medidas de segurança conectadas com a formação da engenharia e da arquitetura — explica.
Visão crítica
Outro que discorda da alteração é o professor João Paulo Correia Rodrigues, da Universidade de Coimbra (Portugal). Referência internacional na área de prevenção e proteção contra incêndios, Rodrigues ressalta que a segurança contra os incêndios é uma matéria complexa, que demanda estudos de diferentes áreas das engenharias.
— São matérias que mesmo profissionais de nível superior precisam ter grande capacidade para absorver. Não me parece que um técnico de nível médio tenha formação de base para assinar projeto de PPCI.
Comandante do Corpo de Bombeiros Militar do RS, o coronel Luiz Carlos Neves Júnior avalia que a Assembleia tem legitimidade para alterar a legislação, mas deve observar a competência técnica de cada profissional.
— O que deve ser observado é se a habilitação concedida corresponde à competência técnica, que é definida nas legislações federais — diz o coronel, sem entrar no mérito do projeto.
Alterações anteriores
Desde a sanção, a Lei Kiss passou por ao menos duas modificações substanciais, feitas em 2014 e 2016. Relembre os principais pontos alterados:
Mudança de 2014: promoveu a liberação de licenças de funcionamento provisórias para edificações com baixo risco de incêndio antes da aprovação do PPCI, desde que o plano já tenha sido protocolado. Também foram definidos critérios diferenciados para estabelecimentos de grande, médio e pequeno porte.
Mudança de 2016: removeu a necessidade da emissão de Alvará de Prevenção e Proteção contra Incêndio (APPCI) para propriedades rurais, exceto silos e armazéns, e para empreendedores que usem sua residência sem atendimento ao público ou para estoque de materiais. Permitiu a emissão de certificado eletrônico de licenciamento para alguns imóveis de até 200 metros quadrados, de até dois pavimentos e grau de risco de incêndio baixo ou médio. Ampliou o prazo de validade dos alvarás e elevou de um para dois anos o prazo para inspeções em locais de reuniões de público, como auditórios e casas noturnas.