Três dias antes da entrevista ao jornalista Pedro Bial em que assumiu sua orientação sexual, o governador Eduardo Leite mandou uma mensagem ao pai, José Luís Marasco Cavalheiro Leite, pedindo uma reunião de família. Por volta das 22h daquela segunda-feira, 28 de junho, os pais e os dois irmãos receberam uma chamada por vídeo no WhatsApp.
Sem pestanejar, Leite anunciou que se revelaria gay em rede nacional. Havia mais de 10 anos que ele dissera aos pais que era homossexual, mas jamais aceitara tratar do assunto publicamente. A súbita decisão foi recebida com surpresa e preocupação, afinal o caçula da família é agora a maior autoridade do Rio Grande do Sul.
— Nós temos um convívio muito afetivo, somos muito brincalhões, então logo um dos irmãos fez uma brincadeira. Mas eu fiquei preocupado. Perguntei se ele havia ponderado sobre a decisão, os lucros e prejuízos políticos que ela acarretaria. Ele sorriu e disse que não se tratava de ponderar sobre isso, mas de fazer o que era certo, se mostrar por inteiro — lembra Marasco.
A conversa foi rápida, pouco mais de 10 minutos. Leite disse que falaria abertamente sobre o assunto no programa de Bial e que já havia abordado a questão com raro desprendimento em entrevista para a revista Piauí, que estava por ser publicada também naquela semana. Todos apoiaram a decisão, embora no íntimo tivessem ficado apreensivos quanto à repercussão.
Fazia alguns meses que o governador mantinha disposição de tornar pública sua orientação sexual. Aos 36 anos, ele convive com ataques políticos eivados de insinuações homofóbicas desde 2012, quando se elegeu prefeito de Pelotas. As agressões mais rasteiras vieram na campanha ao governo do Estado, em 2018.
Na época, adversários manipularam uma foto em que ele e os irmãos Ricardo e Gabriel seguravam a mãe, Rosa Eliana, a Lica, durante banho de mar em Punta Del Este, no Uruguai. A imagem foi recortada, deixando apenas Leite e Ricardo, ambos lado a lado e de torso nu dentro da água, acompanhada das perguntas: “É isto que queremos para o Rio Grande? O primeiro governador homossexual do Brasil?”.
O tucano venceu a eleição com 53,62% dos votos e o assunto parecia esquecido. A pergunta sobre o tema costumava ser assídua em entrevistas. Como o governador sempre respondia que sua sexualidade não era pauta, mas sim seu trabalho, acabava ficando de fora da maior parte das reportagens.
Tudo começou a mudar em fevereiro, quando Leite foi convocado por parlamentares do PSDB a disputar as prévias do partido à Presidência da República em 2022. Disposto a postular o Planalto, o governador sabia que estava entrando num jogo em que por vezes os subterrâneos políticos não têm limites. Os impropérios de teor homofóbico recebidos do presidente Jair Bolsonaro e do ex-deputado Roberto Jefferson, ambos respondidos na Justiça, serviram de ensaio às futuras investidas que sofreria.
A poucos confidentes, Leite admitiu que estava chegando a hora de afirmar publicamente sua homossexualidade, sob pena de mais uma vez ter a família também envolvida nos ataques dos adversários.
— Ando louco para acabar com isso — comentou com uma amiga no início do mês passado, ao afirmar que não entraria em outro projeto político-eleitoral desviando do assunto.
Leite jamais escondeu ser gay. Namorando um médico capixaba desde o ano passado, costuma viajar, frequentar restaurantes e espaços públicos junto com o companheiro, mantendo cuidado nas aparições por temer uma foto roubada ou alguma provocação.
Quando decidiu tornar pública a orientação sexual, Leite buscou primeiro o consentimento do namorado. Ambos conhecem a família um do outro e o governador queria discutir com o médico os inconvenientes que a exposição traria. O passo seguinte foi definir como e quando ele se revelaria gay. Uma rápida olhada na lista de pedidos de entrevista definiu a escolha por Pedro Bial.
Na assessoria de imprensa do governo, ninguém sabia da intenção do governador. A decisão foi discutida somente com a secretaria de Comunicação, Tânia Moreira, a quem coube agendar a presença no programa global.
Naquela quinta-feira, 1º de julho, Leite tinha ao menos quatro conversas com jornalistas em São Paulo. O dia começou no Grupo Bandeirantes, onde deu uma entrevista ao apresentador José Luiz Datena na BandNews. Em seguida, se dirigiu ao instituto Comunitas, entidade financiada por empresários que presta consultoria gratuita a municípios. Lá, gravou depoimento para ser distribuído a prefeituras sobre as reformas que conduziu no Rio Grande do Sul.
O compromisso seguinte era a gravação com Bial. Sozinho numa sala decorada com um jardim de inverno, o próprio governador testou os equipamentos e deu início à entrevista. A conversa se estendia já por 11 minutos quando o jornalista abordou as prévias do PSDB e perguntou que trunfos Leite dispunha no enfrentamento com o governador de São Paulo, João Doria. Destacando o estilo diferente de fazer política, o gaúcho começou falando em integridade e, com indisfarçável sorriso, fez a revelação que horas mais tarde fervilharia nas redes sociais:
— Nunca falei de um assunto que quero trazer para ti no programa, tem a ver com a minha vida privada e não era um assunto até aqui porque se deveria debater mais o que a gente pode fazer na política. Mas nesse Brasil com pouca integridade nesse momento, a gente precisa debater o que se é, para que fique claro, e não se tenha nada a esconder. Eu sou gay. Eu sou gay.
Bial citou o momento histórico, agradeceu a confiança e praticamente não desviou mais do assunto até o final da entrevista. Na equipe que acompanhava o governador, apenas Tânia sabia da revelação que viria. Isolados em duas salas contíguas, os assessores só ouviam as respostas, mas não as perguntas, já que Leite usava fones - portanto não sabiam que partira do tucano a iniciativa de revelar-se gay. Começava então uma angustiante espera pela repercussão.
No início da noite, a Globo começou a exibir chamadas na TV e nas redes sociais anunciando o teor da entrevista. O burburinho foi geral. Leite estava encerrando participação em um debate do jornal O Estado de S. Paulo com Ciro Gomes e Luiz Henrique Mandetta quando seu telefone começou a vibrar. Em poucas horas, recebeu 800 mensagens de WhatsApp, todas felicitando pela coragem.
"Como assim tu faz uma coisa dessas e não me conta nada?", escreveu a prefeita de Pelotas e uma de suas melhores amigas, Paula Mascarenhas.
Não tardou para o termo Eduardo Leite ocupar o primeiro lugar nos trending topics do Twitter, onde permaneceu por 10 horas ininterruptas. O nome também esteve entre os assuntos mais falados do mundo das 22h às 3h. Nas primeiras 24 horas, foram mais de 4 milhões de interações digitais, 3 milhões de compartilhamentos e um alcance estimado de 475 milhões de pessoas. Somente a postagem em que agradeceu o apoio e carinho recebeu 22 mil comentários. Leite ainda obteve 192.595 novos seguidores no Instagram e 33.437 no Twitter. Desde então, já concedeu 23 entrevistas para veículos de 20 estados brasileiros e do Exterior. Há outros 80 pedidos na fila.
A audiência mais importante do governador estava a 1.380 quilômetros de distância, debaixo de cobertores na madrugada fria que teimava em não acabar. Insones e emocionados, Marasco, 75 anos, e Lica, 72, aguardaram até as 2h para assistir ao filho revelar-se por inteiro na maior rede de TV do país. Foram dormir preocupados, mas orgulhosos.
— Como sou pessoa de mais idade, meu ângulo sobre essas questões é um pouco antiquado. A gente passou a vida inteira vendo isso ser motivo de chacota, então imaginei que fosse negativa a repercussão, tive a preocupação de pai. Mas em seguida me dei conta de que o mundo felizmente está mudando. Foram dois dias recebendo mensagens, telefonemas, whats de amigos, parentes, ex-alunos de décadas, todos ressaltando a coragem dele e homenageando a mim e a minha mulher pela educação e caráter. Foi lisonjeiro, uma vitamina para pessoas de mais idade. Achei muito bonito, muito grande o que ele fez — afirma Marasco.