Com 25 anos de história, deixando para trás conturbadas e duvidosas contagens de votos em papel, a urna eletrônica permanece alvo de debate. Desta vez, a um ano e meio da disputa presidencial de 2022, uma comissão especial criada na Câmara dos Deputados discute a proposta de emenda à Constituição (PEC) que quer tornar obrigatória a impressão de comprovantes de votação em eleições, plebiscitos e referendos.
Com ampla participação de aliados do presidente Jair Bolsonaro — crítico contumaz do sufrágio digital, sem jamais ter apresentado provas de irregularidades —, o grupo foi criado no último dia 13. Na mesma data, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, fez um pronunciamento celebrando o aniversário do equipamento desenvolvido no Brasil (utilizado pela primeira vez em 1996) e reafirmando o fato de que, ao longo de 25 anos, “nunca se documentou uma fraude sequer”.
— Pelo contrário, as urnas eletrônicas ajudaram a superar os ciclos da vida brasileira desde a República Velha, em que as fraudes se acumulavam — ressaltou Barroso.
O magistrado lembrou que, em 2002, chegaram a ser acopladas impressoras ao sistema, mas o resultado foi negativo.
— O Brasil tem muitos problemas que o processo democrático e a democracia ajudam a enfrentar e resolver, mas um desses problemas não é a urna eletrônica, que até aqui tem sido parte da solução, assegurando um sistema íntegro e que tem permitido a alternância de poder sem que jamais se tenha questionado de maneira documentada e efetiva a manifestação da vontade popular — reforçou o ministro.
Apesar disso, nos últimos anos houve distintas tentativas de retomar a impressão dos votos. Na minirreforma eleitoral de 2015, a medida foi prevista pelo Congresso Nacional, mas acabou derrubada em 2018, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a medida inconstitucional — entendimento confirmado em 2020.
Não foi suficiente para pôr fim à controvérsia. Desde o pleito de 2018, a urna é alvo de ataques de Bolsonaro. O presidente já insinuou que não irá reconhecer o resultado em 2022, se não houver voto impresso, e teceu elogios à PEC apresentada em 2019 pela ex-vice-líder do governo no Congresso, deputada federal Bia Kicis (PSL-DF).
Na sessão de instalação da comissão, Bia se manifestou sobre o texto. Ela disse que deseja “aperfeiçoar o sistema” para torná-lo mais seguro e transparente.
— Nós esperamos que essa PEC possa libertar os eleitores brasileiros da dúvida, da desconfiança, da angústia de um sistema que, por mais moderno que seja, com tantas qualidades, na verdade, não é perfeito. Nosso trabalho aqui é para aperfeiçoar esse sistema. Ninguém deseja dispensar as urnas eletrônicas. Elas são uma conquista do povo brasileiros. E a gente agradece a todos que trabalharam para que isso fosse possível. Mas temos de olhar para frente. Nosso sistema permite uma eleição célere, mas não dá a devida segurança e transparência — afirmou a deputada.
Na prática, a ideia da PEC é imprimir um comprovante em papel junto à urna, que possa ser conferido pelo eleitor após o voto, sem entrar em contato com ele. A possibilidade preocupa a Justiça Eleitoral por diferentes motivos.
Um deles é a forma como o debate — legítimo, diga-se de passagem — vem se descortinando, com a disseminação de desinformação nas redes sociais e de questionamentos à democracia. Além disso, a Justiça Eleitoral sustenta que há perigo de violação ao voto secreto e há uma série de questões técnicas em jogo, que, na avaliação de especialistas da Justiça Eleitoral, exigem atenção. Entram na lista o custo da modificação, as dificuldades de implementação, o prazo exíguo até a eleição de 2022 e as divergências em torno da efetiva necessidade da alteração.
— Muita gente defende o voto impresso como solução contra fraudes na fase da transmissão e totalização, mas isso não faz sentido. Já temos os boletins impressos de urna, que são emitidos ao final das votações. Os boletins detalham os resultados em cada seção e servem justamente para garantir que os votos computados na urna, que, aliás, não é conectada à internet, sejam os mesmos contabilizados ao final do processo. Mesmo que haja um ataque cibernético, nada vai mudar isso — argumenta Daniel Wobeto, secretário de Tecnologia da Informação do Tribunal Regional Eleitoral no Estado (TRE-RS).
Wobeto lembra que, além disso, os defensores da modificação não atentam para a complexidade do mecanismo proposto.
— Quem reivindica a impressão do voto, trata como se fosse algo simples, mas não é. Primeiro, porque não poderiam ser impressoras comuns. Precisariam ser desenvolvidos equipamentos específicos, garantindo que não haveria intervenção humana no processo — diz o especialista.
Relator da comissão responsável por examinar o assunto, o deputado Filipe Barros (PSL-PR) informou o desejo de concluir o parecer até julho. Depois disso, ainda há um longo caminho até o fim da tramitação da PEC, que exige votação em dois turnos na Câmara e no Senado.
O que diz a PEC do voto impresso
A proposta de emenda à Constituição (PEC) nº 135 de 2019, de autoria da deputada federal Bia Kicis (PSL-DF), diz o seguinte:
“No processo de votação e apuração das eleições, dos plebiscitos e dos referendos, independentemente do meio empregado para o registro do voto, é obrigatória a expedição de cédulas físicas conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas, de forma automática e sem contato manual, em urnas indevassáveis, para fins de auditoria”.
Ou seja: o texto não acaba com a urna eletrônica, mas obriga a impressão de comprovante do voto. Na justificativa da PEC, a deputada argumenta que a medida “é essencial para dar segurança e confiabilidade a um sistema eleitoral eletrônico”.
Como é a tramitação
- Após passar pela Comissão de Constituição e Justiça, a PEC é examinada por uma comissão especial, que tem 40 sessões para votar o texto
- Se for aprovada, a PEC é analisada no plenário, onde a aprovação depende dos votos favoráveis de três quintos dos deputados (308), em dois turnos
- Depois, a PEC é enviada para o Senado, que pode aprová-la integralmente, propor modificações ou rejeitá-la
- Em caso de rejeição, a PEC é arquivada e não pode ser reapresentada na mesma legislatura; se for aprovada sem alterações, é promulgada e, em caso de alterações, volta para a comissão especial e o processo é retomado