Caso seja convocado para para depor na CPI da Covid, do Senado, o governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB) deve se apresentar como vítima e não como suspeito. É que no único caso de desvio de verbas da saúde durante a pandemia averiguado até agora pela Polícia Federal (PF) no Rio Grande do Sul, o governo do Estado figura como alvo da cobiça de fraudadores, e não como investigado.
O caso que pode ser abordado pela CPI da Covid é a Operação Camilo, na qual a PF, o Ministério Público Federal (MPF) e o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público Estadual, detectaram indícios de desvio de R$ 15 milhões a partir da terceirização dos serviços do Hospital Regional do Vale do Rio Pardo (HRVRP), situado na cidade com o mesmo nome.
As fraudes teriam sido viabilizadas por meio da Associação Brasileira de Assistência Social, Saúde e Inclusão (Abrassi), uma organização social encarregada de providenciar vigilância e portaria, alimentação e dietética, manutenção predial, lavanderia, limpeza e sanitização hospitalar, radiologia, exames de imagem e Samu do hospital. Ela subcontratou empresas que, segundo a PF, superfaturaram valores cobrados do Estado e da União. Parte dos serviços sequer foi executada.
Conforme a PF, de novembro de 2017 até fevereiro de 2020 foram destinados ao hospital de Rio Pardo cerca de R$ 60 milhões. Desses, R$ 30 milhões foram repassados pela Abrassi às empresas subcontratadas e os indícios são de que R$ 15 milhões foram superfaturados.
A maior parte dos desvios detectados nada tem a ver com a pandemia, porque aconteceram antes de fevereiro de 2020. Mas a força-tarefa de investigação analisa um caso posterior ao advento da covid-19 no Brasil.
É o repasse de R$ 3,3 milhões a uma empresa ligada à Abrassi, que deveriam ser destinados à construção de 10 leitos de UTI no Hospital Regional do Vale do Rio Pardo. As obras estão em andamento, mas o projeto elaborado pela organização social, que resultou na contratação, é considerado impreciso, sem levantamentos prévios de custos, utilizado somente para recebimento da verba pública. A empresa contratada para executar a obra tem ligações de amizade e sociedades informais, segundo a PF, com a organização social investigada.
O Gaeco também aponta descaso da Abrassi com a saúde pública em situações como a distribuição de máscaras de proteção facial vencidas aos profissionais que trabalham no hospital, já durante a pandemia. A prefeitura também teria determinado a desinfecção de ruas da cidade contra o coronavírus, mas no lugar de desinfetante teria sido utilizada apenas água.
A reportagem ouviu o delegado Mauro Lima Silveira e o promotor de Justiça João Beltrame, que deflagraram a Operação Camilo. Os dois dizem que nenhum servidor estadual é suspeito de desvios no episódio e que o Estado figura como vítima, não como investigado.
A PF e promotores de Justiça identificaram que a Abrassi e as empresas subcontratadas por ela, em sua maioria, são dirigidas e pertencem, de fato, a outras pessoas que não aquelas que constam em seus contratos sociais ou atos constitutivos. O objetivo seria esconder a relação estreita e direta entre elas. Cargos e empregos criados pelo hospital público gerido pela organização social eram usados para benefício dos investigados e de seus indicados, sem observância aos critérios constitucionais da impessoalidade, moralidade e eficiência, denuncia o Gaeco.
Um dos principais investigados foi o prefeito de Rio Pardo, Rafael Reis Barros (PSDB), que foi preso e, posteriormente, renunciou ao cargo. Outros investigados são secretários do município, dirigentes da Abrassi e donos de empresas que foram contratadas para os serviços de saúde não executados ou suspeitos de desviar dinheiro dos contratos.
O caso já está em fase judicial. Oito pessoas viraram rés em processo que será apreciado pelo juiz Ricardo Humberto Silva Borne, da 11ª Vara Federal de Porto Alegre. Os crimes apontados são corrupção ativa e passiva, fraudes licitatórias, peculato, falsidade ideológica, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Mas a investigação por parte da PF e do Gaeco continua e deve ter desdobramentos.
CONTRAPONTOS
GZH tentou contato com o ex-prefeito de Rio Pardo e com dirigentes da Abrassi, mas não os localizou. Ao longo do inquérito policial, eles admitiram que conheciam os donos de empresas contratadas pelo hospital, mas garantiram que os serviços foram executados e nada sabem sobre desvios.