O policial militar Fabrício Queiroz era figura conhecida dos caixas, no banco dentro do prédio da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Assessor parlamentar do então deputado Flávio Bolsonaro, os saques, depósitos e pagamentos de boletos - dele e do patrão - na agência eram rotineiros. Na segunda-feira da semana que antecedeu o primeiro turno das Eleições de 2018, Queiroz chegou cedo. Foi atendido às 10 horas e 21 minutos. Entregou dois boletos e um "maço de dinheiro" - operação de quantia elevada, que teve liberação do gerente. O troco e os comprovantes de quitação foram entregues ao cliente, que ainda fez um saque de R$ 5 mil, em espécie.
A sequência narrada tem registro em vídeo das câmeras de segurança do banco e fotos de reprodução. Material anexado ao procedimento de investigação por suspeita de esquema de "rachadinhas" e contratações fantasmas, aberto pelo Ministério Público do Rio em 2018 contra o senador Flavio Bolsonaro (Republicanos/RJ). Os títulos bancários pagos por Queiroz, naquele 1.º de outubro, eram as mensalidades da escola das duas filhas do casal Flávio e Fernanda Antunes Figueira Bolsonaro.
A descoberta decorreu do levantamento do sigilo bancário e fiscal dos investigados, em abril de 2019. Considerada a prova central do caso, a quebra dos sigilos fiscal e bancário foi anulada na semana passada pela 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Foram alvos da quebra dos sigilos, o filho mais velho do presidente, Jair Bolsonaro, sua nora, Queiroz e dezenas de assessores, ex-assessores, parentes, amigos e vizinhos do "clã Bolsonaro".
Na sessão desta terça-feira (2) o colegiado julgaria mais dois recursos da defesa de Flávio. Se aceitos pelo STJ, podem anular toda investigação das "rachadinhas" , desde sua origem, às provas, demais atos do procedimento e a denúncia. Os recursos, no entanto, foram retirados ontem da pauta 5.ª Turma, por tempo indeterminado.
Prova central
Mesmo que os dois recursos sejam rejeitados pela 5.ª Turma, integrantes do MP do Rio avaliam que a primeira denúncia das "rachadinhas" contra Flávio Bolsonaro, apresentada em novembro de 2020, ao Tribunal de Justiça do Rio, perdeu a "espinha dorsal", com a decisão do dia 23, que retira todo acervo de dados obtidos com a quebra e contamina provas e atos relacionados.
Decretada em abril de 2019, pelo juiz da 27.ª Vara Criminal do Rio, Flávio Nicolau Itabaiana, os dados da quebra embasam a maior parte das 400 páginas da denúncia, serviram de argumento para os pedidos de prisão de Queiroz e sua mulher, de buscas e apreensões feitas nos últimos dois anos e serviu de elemento de prova para parte robusta das investigações conexas, ainda sigilosas.
A análise dos registros bancários e fiscais permitiu ao MP a rastreabilidade do caminho, da origem ao destino, de pelo menos R$ 2 milhões - dos cerca de R$ 4 milhões que teriam sido desviados da Alerj. Recursos públicos que, segundo os promotores, serviu para suposto enriquecimento ilícito e custeio de despesas pessoais de Flávio e família.
Por meio dos dados, os promotores disseram ter obtido "provas cristalinas" de que Queiroz pagava até mesmo as mensalidades escolares das filhas de Flávio Bolsonaro com dinheiro ilícito oriundo do esquema das "rachadinhas".
Entre 2015 e 2018, por exemplo, dos R$ 251,8 mil pagos ao colégio das netas do presidente, R$ 153 mil - equivalentes a "53 boletos bancários" - foram pagos "dinheiro em espécie não proveniente das contas bancárias do casal", segundo as apurações.
"Siga o dinheiro"
Em apurações de crimes financeiros, uma regra básica e bastante conhecida é: siga o dinheiro. Técnica consagrada, que tem como fundamento o foco em uma das etapas do processo de branqueamento de "dinheiro sujo" (seja de corrupção, do roubo ou do tráfico): a de movimentação sucessiva dos valores para afasta-lo da origem criminosa e despistar possíveis rastreamentos, permitindo que ele chegue ao destino, de forma aparentemente legal.
No procedimento investigatório do MP das "rachadinhas", aberto em 2018, a obtenção dos dados bancários é considerada um divisor de águas. As informações obtidas renderam, à partir do segundo semestre de 2019, pedidos de aprofundamento das apurações, diagramas e planilhas sobre os núcleos operacionais dos suposto esquema e valores relacionados a eles e provas para a primeira denúncia do caso. Foram essenciais para a comprovação dos esquemas de lavagem de dinheiro acusados.
Segundo o MP, a devolução parcial dos salários dos "assessores fantasmas" ocorria, na maioria das ocasiões, por meio de saques em espécie realizados logo após os depósitos dos pagamentos da Alerj. "Não se trata de mera coincidência, ou obra do acaso, mas opção deliberada pela realização de operações que não deixassem registros diretos no sistema financeiro acerca do destino dos recursos", informam os promotores, nos autos.
"Apesar do indisfarçável propósito de despistar o percurso" do dinheiro desviado da Alerj, "pôde-se, ainda assim, identificar pelo cruzamento de dados bancários que vários desses saques em espécie estão associados a depósitos, também em espécie, na conta bancária do denunciado Fabrício Queiroz, inclusive efetuados nas mesmas datas e nos mesmos valores dos saques", registra a primeira denúncia contra Flávio.
A reportagem do Estadão ouviu investigadores e pessoas relacionadas ao inquérito, que avaliam que a nulidade da denúncia contra Flávio Bolsonaro e provas essenciais como a quebra de sigilo bancário e fiscal dos alvos levará, em cadeia, uma série de outras investigações para a estaca zero.
Ilegal
A defesa de Flávio Bolsonaro aponta desde 2018 que a quebra de sigilo bancário e fiscal decretada pelo juiz da 27.ª Vara Criminal teria sido ilegal. Depois de ter os argumentos negados no Tribunal de Justiça do Rio, os advogados recorreram ao STJ. O relator do caso, ministro Félix Fischer, também entendeu serem legais a decisão de Flavio Itabaiana, como o uso da quebra.
O advogado do senador, Frederick Wassef, e a advogada Nara Nishizawa levaram o pedido ao colegiado da 5.ª Turma - composto por cinco ministros. Depois de alguns adiamentos no julgamento, a tese foi aceita pelo voto de vista do ministro João Otávio de Noronha. Seguido pelos ministros Reynaldo Soares da Fonseca, Ribeiro Dantas e José Ilan Paciornik.
O voto de Noronha encampou argumento dos advogados de Flávio de que a decisão da 27.ª Vara Criminal do Rio foi mal fundamentada. Noronha - considerado um ministro alinhado ao Palácio do Planalto - tem sido criticado, nos bastidores, por tentar se cacifar para a vaga que será aberta no Supremo Tribunal Federal (STF) em julho.
Na semana passada, Noronha adiantou seu voto nos dois outros recursos da defesa de Flávio, que seriam julgados nesta semana, mas foram adiados. O ministro também acolheu a tese dos advogados de Flávio de que o relatório o Coaf - origem das investigações, em 2018 - é ilegal e inválido, tornando irregular todo procedimento de apuração do MP. A defesa pede ainda que todos os atos do juiz da primeira instância são nulos, depois que o TJ do Rio entendeu, em julho de 2020, que o caso das "rachadinhas" era para ser julgado em segunda instância, por Flávio ter foro privilegiado.
Sem provas
Frederick Wassef sustenta que nada foi encontrado nas quebras de sigilo "de mais de 100 pessoas e por 12 anos", que incriminasse Flávio Bolsonaro.
Em entrevista, após decisão do STJ, o advogado disse que o pedido e a quebra do sigilo bancário e fiscal feito pelo MP, e aceito pelo juiz da 27.ª Vara Criminal do Rio, foi um tentativa de "validar" o uso de dados do relatório de inteligência financeira do Coaf (atual Unidade de Inteligência Financeira). Assim, seria ilegal e invalida toda a apuração contra o senador.
No entendimento da defesa, o documento do Coaf já havia "devassado" ilegalmente a vida financeira de Flávio Bolsonaro.
O senador disse ter ficado "satisfeito em saber que existe um Judiciário corajoso e que está fazendo a lei ser cumprida". Ele destacou ao atacar a amplitude da quebra de sigilo, em especial de sua mulher, Fernanda Bolsonaro. "As quebras de sigilo foram sem qualquer fundamento. Eles pegaram a minha esposa, por exemplo, quebraram o sigilo dela por 12 anos, eu sou casado há 10, com ela."
A defesa de Queiroz afirma, nos autos, que as transações efetuadas são explicáveis, não havendo envolvimento do cliente com crimes. O TJ recebeu na quinta-feira, 25, a decisão do STF e deve nessa semana decidir se solta o ex-assessor. Ele e a mulher, Márcia Oliveira de Aguiar - que também era assessora e suspeita de ser parte das "rachadinhas" -, estão em prisão domiciliar.