Ao completar um ano no governo, Sergio Moro acumulava uma série de atritos com Jair Bolsonaro, da flexibilização da posse de armas às pressões do presidente sobre a Polícia Federal (PF). O então ministro da Justiça, porém, se recusava a comentar as atitudes do chefe.
— Eu não contrario publicamente o presidente. Existe aí, evidentemente, uma cadeia de comando — disse Moro em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em janeiro. Três meses depois, ele pediu demissão e abriu um arsenal de críticas a Bolsonaro.
Durante permanência no cargo, Moro optou por um discurso de alinhamento com o presidente e chegou a defender posições que, agora, ele classifica como condenáveis ou que podem até ser enquadradas como crimes. Seu discurso de despedida do governo, em abril, com críticas a Bolsonaro, provocou a abertura de uma investigação pela Procuradoria-Geral da República (PGR), autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sobre possível interferência do presidente na PF.
No início do ano, quando concedeu aquela entrevista ao Roda Viva, o ex-juiz já enfrentava a ofensiva de Bolsonaro para trocar o comando da PF — algo que Moro passou a denunciar como uma tentativa de interferência política sobre o órgão, alvo de inquérito no STF. Ele, no entanto, minimizou as investidas do chefe. Naquela ocasião, Moro afirmou que a primeira tentativa de mudar o superintendente da PF no Rio, em agosto de 2019, havia sido apenas fruto de "um mal-entendido".
O ex-juiz atribuiu publicamente aquela pressão a uma investigação sobre crimes previdenciários que levantava suspeitas sobre um homem identificado como Hélio Negão — codinome usado pelo deputado Hélio Lopes (PSL-RJ), amigo de Bolsonaro e aliado inseparável dele.
— É um mal-entendido em relação a uma situação específica na Polícia Federal em que se inseriu fraudulentamente o nome de um deputado ligado ao presidente numa investigação. Tentaram fraudulentamente colocar o presidente contra a Polícia Federal — disse Moro, na ocasião. Um mês antes, Moro havia declarado que Bolsonaro tinha o direito de fazer as nomeações de sua escolha para a Polícia Federal, mas que acreditava que "todos os questionamentos foram superados".
A tentativa de contemporização contrasta com as declarações mais recentes de Moro sobre o assunto. Em depoimento à PF no dia 2 de maio, o ex-juiz disse que "não havia nenhum motivo para essa substituição". Além disso, Moro afirmou aos investigadores que o presidente voltou a fazer pressão por substituições na PF em janeiro deste ano. A entrevista ao Roda Viva aconteceu no dia 21 daquele mês.
— O assunto retornou com força em janeiro de 2020, quando o presidente disse [...] que gostaria de nomear Alexandre Ramagem no cargo de diretor-geral — disse Moro em depoimento há pouco mais de duas semanas. Procurado para comentar suas antigas declarações, o agora ex-ministro afirmou que a tentativa de interferência na PF havia sido "contornada em agosto de 2019" e só se tornou "mais clara desde então".
"[A interferência] apenas se concretizou com a decisão de demitir, sem motivo, o DG [diretor-geral] da Polícia Federal, o que levou ao meu pedido de demissão", afirmou à reportagem, em nota. O ex-juiz também declarou: "Infelizmente, no decorrer do mandato, a agenda anticorrupção foi sendo deixada de lado e houve uma mudança de rumo no governo, com a adoção de discursos e medidas questionáveis por parte do presidente da República. Isso foi, aos poucos, se tornando perceptível por todos".
A ausência de uma reação pública de Moro às pressões de Bolsonaro durante sua permanência no Ministério chegou a perturbar a cúpula da PF. Integrantes do órgão também ficaram incomodados com a exigência feita pelo ministro para que fosse investigada a inclusão de Hélio Negão no inquérito, como resposta ao presidente.
Policiais manifestaram ainda constrangimento quando Moro defendeu Bolsonaro de suspeitas de caixa dois no momento em que agentes encontraram uma planilha que citava a campanha do presidente durante a investigação do esquema de candidatas laranjas do PSL em Minas Gerais.
"Nem o delegado nem o Ministério Público, que atuam com independência, viram algo contra o PR [presidente da República] neste inquérito de Minas. Estes são os fatos", escreveu Moro, em outubro. O ministro, celebrizado por sua atuação como magistrado na Operação Lava-Jato, manteve um discurso afinado com o governo em assuntos polêmicos, apesar de ter enfrentado choques constantes com o presidente.
Quando Bolsonaro editou seu terceiro decreto para flexibilizar o porte de armas, em maio do ano passado, o então ministro defendeu publicamente o texto. Depois do pedido de demissão de Moro, contudo, o presidente afirmou que o auxiliar era "lamentavelmente desarmamentista" e que teve "dificuldades enormes" para editar seus decretos. No cargo, o ministro não manifestou críticas abertas a essas medidas.
No discurso em que atacou Moro, Bolsonaro reclamou da resistência do então ministro e disse que "não foi fácil" revogar a nomeação para o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária da cientista política Ilona Szabó, alvo dos apoiadores do presidente. Quando estava no cargo, Moro tratou a questão de uma maneira mais suave:
— O presidente me pediu educadamente que eu revisse a nomeação. [...] Eu entendi que o pedido era razoável — declarou, em abril de 2019, no programa Conversa com Bial, da TV Globo.
O alinhamento se estendeu a outros temas. Em fevereiro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, perguntou a opinião de Moro sobre medidas de combate a fake news, durante uma entrevista em seu canal no YouTube.
— Não vejo isso como sendo um grande problema atual. Acho que há um certo exagero em relação a isso — respondeu o ex-juiz.
Depois de deixar o cargo, Moro se disse vítima de ataques com base em notícias falsas: "Tenho visto uma campanha de fake news nas redes sociais e em grupos de WhatsApp para me desqualificar. Não me preocupo; já passei por isso durante e depois da Lava-Jato".
O então ministro também evitou fazer reparos à conduta de Bolsonaro na crise do coronavírus. Esse silêncio fez com que o presidente considerasse o auxiliar egoísta por não ecoar o discurso oficial do governo.
Nos bastidores, Moro dizia a aliados que estava insatisfeito com o comportamento do presidente, mas dava tímidas declarações de apoio ao superior. À Folha de S.Paulo, em março, ele disse que o governo tomava medidas contra a pandemia "sob orientação" do presidente. Quando os repórteres pediram que ele comentasse o comportamento de Bolsonaro, o ex-juiz ameaçou encerrar a entrevista.