Na dificuldade de conseguir nomes mais técnicos e com currículo vistoso entre seus apoiadores, o presidente Jair Bolsonaro resolveu apelar para os colegas de farda. O resultado é que nunca em tempos democráticos tantos militares ocuparam funções em um governo.
Levantamento do site Poder 360 — confirmado por GaúchaZH — aponta que mais de 2,8 mil integrantes das Forças Armadas trabalham hoje em funções administrativas do governo federal. Na maioria dos casos, recebem Funções Gratificadas (FGs), o que gera reforço extra no salário, mas há muitos em Cargos em Comissão (CCs), sobretudo os reservistas. Desse total, cerca de 1,5 mil são do Exército, 680 da Marinha e 622 da Aeronáutica.
É um salto e tanto em relação ao início de governo. Em fevereiro de 2019, GZH mostrou que ao menos cem pessoas das Forças Armadas ocupavam cargos de primeiro, segundo e terceiro escalões na gestão Bolsonaro. Fossem somados a esses os integrantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que cuida da segurança presidencial e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o serviço de contraespionagem, o número chegaria a 900.
Agora são mais de 2,8 mil, incluindo GSI e Abin. Pelo menos três vezes mais que no início do governo. Analistas reparam que, assim como os governos petistas levaram ao Planalto sindicalistas de vários matizes, agora Bolsonaro recheou o governo de militares.
A origem na caserna começa pelo presidente (capitão reformado do Exército) e seu vice, Hamilton Mourão (general da reserva). Sem surpresa, os militares formam maioria entre os 18 ministros. São nove titulares dos ministérios e um interino. Do Exército vieram Braga Neto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Augusto Heleno (GSI), Fernando Azevedo e Silva (Defesa), Wagner Rosário (CGU) e Tarcísio Freitas (Infraestrutura).
Da Marinha veio Bento Albuquerque (Minas e Energia). Da Aeronáutica, o astronauta Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia).
O nono ministro titular de origem militar é um PM da reserva do Distrito Federal, Jorge Oliveira (Secretaria-Geral da Presidência).
Motivos
O décimo ministro militar é o interino na Saúde, general Eduardo Pazuello, mas que age com desenvoltura de titular. Tanto que nomeou 17 militares para ocuparem postos-chave no ministério. Desses, apenas um tem formação em saúde, uma tenente-médica.
GZH falou com generais e com especialistas em assuntos militares. Vários são os motivos apontados para a militarização. Entre eles, transferência do prestígio das Forças Armadas ao governo.
— O efeito colateral é o possível comprometimento da imagem das Forças Armadas com atos governamentais impopulares ou até irregulares — analisa um general que prefere não se identificar.
Também pesam o fato de que militares estão acostumados a obedecer sem discutir e que o governo trabalha com a ideia de que colocar pessoas com trajetória retilínea em cargos ambicionados por políticos pode evitar eventuais desvios de verbas. Veja mais razões no quadro ao lado.
Postos-chave ocupados atualmente
Militares da ativa e da reserva em postos de comando na gestão Bolsonaro:
- Casa Civil – ministro Braga Netto (general, do Exército), secretário-executivo Sérgio José Pereira (general, do Exército)
- Secretaria de Governo – ministro Luiz Eduardo Ramos (general, do Exército)
- Secretaria Geral da Presidência – ministro Jorge Oliveira (major, da PM do Distrito Federal) e mais três oficiais do Exército como secretários
- Gabinete de Segurança Institucional (GSI) – ministro Augusto Heleno (general, do Exército), secretário-geral Douglas Bassoli (general, do Exército)
- Ministério da Defesa – ministro Fernando Azevedo e Silva (general, do Exército), secretário-geral Almir Garnier Santos (almirante, da Marinha) e o chefe de gabinete, Edson Ripoli (general, do Exército)
- Controladoria-Geral da União (CGU) – ministro Wagner Rosário (capitão, do Exército)
- Ministério da Infraestrutura - ministro Tarcísio Gomes de Freitas (capitão, do Exército) e secretário nacional de Transportes Terrestres, Marcello Costa Vieira (tenente-coronel, do Exército)
- Saúde – ministro interino Eduardo Pazuello (general, do Exército), secretário-geral Antônio Élcio Franco Filho (coronel, do Exército) e mais 16 militares como assessores e diretores
- Minas e Energia – ministro Bento Albuquerque (almirante, da Marinha)
- Meio Ambiente – secretário-executivo Luís Gustavo Biagioni (tenente-coronel, da PM paulista) e secretário de orçamento e finanças, Nader Motta (general, do Exército)
- Ciência, Tecnologia e Comunicações – ministro Marcos Pontes (tenente-coronel da Aeronáutica) e mais seis oficiais superiores da Aeronáutica e do Exército
- Itaipu Binacional – presidente Joaquim Silva de Luna (general, do Exército)
- Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE, espécie de serviço de informações da Presidência da República) – titular é Flávio Augusto Viana Rocha (almirante da Marinha). E pelo menos 20 militares em assessorias
- Correios – presidente Floriano Peixoto (general, do Exército), além de dois outros generais na Postal Saúde, a caixa de assistência dos servidores dos Correios
- Dnit - Diretor-geral Antônio Leite dos Santos Filho (general, do Exército), diretor-executivo André Kuhn (coronel, do Exército)
- Caixa Econômica Federal – assessores Marcos Perdigão Bernardes (oficial da Marinha), Almir Alves Junior (oficial da Marinha) e Mozart de Oliveira Farias (oficial da Aeronáutica)
- Petrobras – presidente do Conselho de Administração, Eduardo Bacellar Leal Ferreira (almirante, da Marinha)
- Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – presidente Oswaldo Ferreira (general do Exército)
Estudo aponta razões da militarização na administração
A adesão em peso de fardados ao governo é uma via de mão dupla, como mostra o estudo As Forças Armadas no governo Bolsonaro, elaborado em abril pelo Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES), montado por professores de diversas universidades para discutir questões geopolíticas. No documento, os pesquisadores de Relações Internacionais Ana Penido, Jorge Rodrigues e Suzeley Kalil Mathias consideram que militares têm apoiado Bolsonaro e tolerado sua impulsividade por vários motivos. Veja alguns deles:
Valorização profissional: os militares tiveram no governo aumentos salariais, uma reforma previdenciária que os poupou de diversos cortes vivenciados pelos servidores civis e acenos de conquistas no orçamento das Forças Armadas. As funções gratificadas também reforçam as finanças pessoais, o que não é desprezível.
Tutela ao presidente: ao entrar no governo, muitos generais tinham a impressão de que poderiam tutelar os impulsos de Bolsonaro. Isso aconteceu em parte, com o presidente seguindo alguns conselhos. De outro lado, Bolsonaro fez o que sempre soube: política sindical, de agrado ao baixo clero militar. Essa popularidade o credencia perante a estrelada cúpula das Forças Armadas, de tal forma que alguns generais foram demitidos, sem qualquer burburinho nos quartéis.
Afinidade ideológica: ela é bem maior com Bolsonaro do que com presidentes anteriores. Os generais mais antigos não perdoam o governo Dilma Rousseff por ter prestigiado a Comissão Nacional da Verdade para investigar torturas e desaparecimentos ocorridos na ditadura militar. Oficiais mais novos consideram que todos os governos democráticos são moles com a criminalidade – e muitos enxergam em Bolsonaro o primeiro a romper com essa suposta tradição.
Repúdio a políticos: os militares costumam cultivar repúdio a políticos em geral, por desconfiarem de suas intenções e seu patriotismo. A prevenção é ainda maior contra militantes de esquerda. Vigora nas Forças Armadas brasileiras um anticomunismo histórico. Isso não significa que os generais estão dispostos a deflagrar rompimento institucional como em 1964. Até porque voltaram ao poder, com a eleição de Bolsonaro. Mais fácil mandarem recados subliminares aos políticos
Ruim com Bolsonaro, pior sem ele: a cúpula militar torce o nariz para o temperamento explosivo e imprevisível de Bolsonaro, mas não perde oportunidade de mostrar desgosto ante a ideia de remoção do presidente do cargo. Afinal, Bolsonaro representa um projeto com o qual os militares se identificam, sobretudo os oficiais de patentes médias. Em recente formação de oficiais da PM em São Paulo, Bolsonaro foi aclamado, o governador João Doria, vaiado.
Ruptura ou acomodação?
Há sintonia total entre o presidente e as Forças Armadas? Não. Desagrada aos comandantes os rompantes do presidente e, sobretudo, a simpatia explícita demonstrada pela família Bolsonaro com PMs milicianos do Rio de Janeiro, sua base eleitoral. Mas ainda é cedo para dizer se isso vai gerar ruptura ou acomodação.