O discurso do presidente Jair Bolsonaro em cadeia nacional de televisão e rádio, em que ele pregou o abandono da quarentena geral como forma de enfrentar a pandemia do coronavírus devido aos danos econômicos, na terça-feira (24), teve um alto custo político no primeiro momento, mas também serviu como gatilho de remobilização e reação da base que ainda lhe é fiel.
Embora tenha perdido aliados no campo da direita, a exemplo do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), Bolsonaro também conseguiu polarizar a discussão, um cenário de disputa contra um inimigo em que o presidente costuma ter mais desenvoltura. Essa injeção de energia no bolsonarismo resultou em carreatas que ocorreram em cidades do Brasil nesta sexta-feira (27) em favor da reabertura do comércio e da retomada da atividade econômica, tendo como adversários os governadores, prefeitos e demais defensores do isolamento social.
— Bolsonaro joga com uma divisão entre um setor que seria mais esclarecido, defensor da quarentena, contra o setor empreendedor, ávido por voltar ao trabalho e preocupado com a economia. Então ele aglutinou para si essa militância contra a quarentena e o bolsonarismo reagiu de alguma forma. Mas ele não fez isso sem perdas. O forte rechaço ao pronunciamento certamente teve um preço político — analisa Márcio Ribeiro, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP) e um dos coordenadores do Monitor do Debate Político no Meio Digital.
Para Pedro Bruzzi, sócio da Arquimedes, consultoria de análise política e redes sociais, o presidente sofreu grande desgaste após o pronunciamento, mas os efeitos do discurso promoveram uma mudança de cenário na opinião pública.
— A base de apoio ao Bolsonaro nas redes vem caindo há algum tempo, mas ele sempre teve algumas bolas de segurança para aglutinar, como falar mal do PT ou criticar o Rodrigo Maia. São estratégias diversionistas para desviar o foco e recuperar o controle da narrativa. Ele chegou ao pronunciamento enfraquecido, mas o que aconteceu desde terça indica mudança. O fim do mês está chegando e as pessoas precisam pagar as contas. Na quinta-feira (26), percebemos uma virada de chave. Isso não quer dizer que a maioria esteja com ele, continuamos verificando que a maior parte das menções a Bolsonaro é negativa, mas houve um crescimento das citações positivas — avalia Bruzzi.
Na quarta-feira (25), quando a readequação de forças teria começado, a hashtag #Bolsonarotemrazão alcançou 644,2 mil referências, ao tempo em que três hashtags críticas ao governo obtiveram 216,6 mil menções, conforme estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
— Desde o começo do coronavírus, o presidente vinha vendo sua base se dividir sob o pretexto da irresponsabilidade de suas ações, mas a questão econômica voltou a unificar a sua base digital. Ele perdeu 20% da sua base com essa posição (contra a quarentena), mas conseguiu gerar mais coesão entre os que ficaram. O setor econômico e a população com renda mais alta são os que se aglutinam em torno do presidente no momento — diz Felipe Nunes, diretor da Quaest Consultoria e professor de ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Deslocamento do debate
Especialistas em análise de comportamento e discurso em mídias digitais apontam outro detalhe revelador: após o pronunciamento de Bolsonaro, houve um deslocamento do cerne do debate. Isso indica que, ao menos, Bolsonaro recuperou algum controle sobre a narrativa.
— O que a gente observa é que a discussão saiu do tema específico coronavírus. Se tornou um debate sobre sair ou não sair da quarentena. As pessoas começam a discutir o discurso do Bolsonaro, e não as medidas do Ministério da Saúde. Isso acendeu, sim, a militância virtual e mobilizou a polarização — diz Raquel Recuero, coordenadora do MIDIARS, grupo de pesquisa em mídia, discurso e análise de redes sociais vinculado à Universidade Federal de Pelotas (UFPEL).
Ela observa que, apesar da aglutinação, os núcleos de apoio a Bolsonaro têm apresentado "desunião". O diagnóstico é reflexo de antigos apoiadores do presidente que romperam com ele na crise do coronavírus, caso da deputada estadual Janaína Paschoal, liderança de peso na direita brasileira por ter sido expoente no processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic), da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Fábio Malini destaca o alto risco das estratégias lançadas pelo presidente no curso da pandemia.
— A mobilização feita pelo presidente tem impacto momentâneo. A questão é o quanto isso vai afetar daqui a 14 dias. Se as mortes aumentarem dramaticamente, vamos vivenciar um problema ainda maior para o governo. Além de ele já estar sob um contingente maior de pessoas criticando, poderemos ter uma espécie de conflito civil na sociedade brasileira pela culpabilização daqueles que se colocaram como artífices do que está por vir. Esse "pagar para ver" do presidente pode colocá-lo em situação política delicada — argumenta Malini.
A avaliação é compartilhada por Ribeiro, da USP:
— O que provavelmente vai acontecer é que o número de mortes vai crescer muito, e isso vai ter um impacto na opinião pública. A discussão ainda é muito abstrata para as pessoas hoje, estamos vendo números. Mas, se as projeções estiverem corretas, logo mais as pessoas terão amigos, parentes e conhecidos mortos pela covid-19. Isso pode enfraquecer bastante o Bolsonaro.
Malini chama atenção para outro aspecto da aposta discursiva do presidente, que foi a priorização da cadeia de rádio e TV para o pronunciamento oficial. A característica dele sempre esteve atrelada ao vigor nas redes sociais:
— Houve mudança na estratégia de comunicação do governo, se voltando mais para a comunicação massiva de rádio e tevê. Eles fizeram isso porque, nas redes sociais, estavam perdendo a batalha. E estavam perdendo porque o nível de produção de postagens e o tempo que as pessoas estão dedicando às redes sociais aumentou muito. Como as críticas a ele cresceram, a capacidade de Bolsonaro influenciar nesse contexto se reduziu nas redes.