A afirmação do presidente Jair Bolsonaro de que o brasileiro é resistente a problemas de saúde ligados à falta de saneamento básico é desmentida por pesquisas independentes e dados tabulados pelo próprio governo federal que indicam uma cifra de 11 mil mortes ao ano, em média, provocadas por doenças relacionadas ao alto índice de esgoto não tratado no país, a falhas no abastecimento de água potável e ao manejo de resíduos.
O Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Sistema Único de Saúde (SUS) contabiliza um total de 111,9 mil mortes em 10 anos, entre 2008 e 2017, causadas por dezenas de doenças vinculadas em algum grau à falta de condições sanitárias adequadas e a ambientes que favorecem a proliferação de insetos transmissores de vírus. Enquadram-se nesta categoria complicações intestinais, esquistossomose, leishmaniose, dengue, doença de chagas, malária, entre outros males menos frequentes.
Ao chegar à residência oficial do Palácio da Alvorada, na quinta-feira (26), Bolsonaro declarou a jornalistas não acreditar em uma epidemia muito violenta de coronavírus no país porque uma parcela da população teria contraído anticorpos por já ter se contaminado em algum momento (ele não esclareceu percentuais ou a fonte da informação). Em seguida, acrescentou que os brasileiros contariam com uma espécie de imunidade natural contra vírus e bactérias geralmente associados a más condições de higiene.
— O brasileiro tem que ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando no esgoto ali, ele sai, mergulha, tá certo...e não acontece nada com ele — disse o presidente.
No Rio Grande do Sul, no mesmo prazo de 10 anos que se estende até o período mais recente com dados disponíveis no SIM, foram registradas 2,7 mil mortes por doenças vinculadas à falta de saneamento - a principal causa, com 1,7 mil ocorrências, foi diarreia ou gastroenterite de origem infecciosa. Isso não quer dizer que todas as vítimas viviam em condições precárias, mas foram alvo de males que proliferam muito mais onde há pouca infraestrutura. Um levantamento do Instituto Trata Brasil comprova isso: as 10 piores cidades no ranking nacional de saneamento tiveram uma taxa de internações por diarreia 2,7 vezes superior à dos municípios classificados nas primeiras posições entre os anos de 2007 e 2015.
O mestre em Hidráulica e Saneamento e doutor em Saúde Pública pela USP Alceu Galvão afirma que a declaração de Bolsonaro não tem respaldo na realidade.
— Além das doenças de veiculação hídrica, pela água contaminada, temos aquelas associadas ao mosquito. Muita gente armazena água de forma inadequada, por exemplo, por não ter boas condições de saneamento. A fala do presidente foi equivocada e nega dados do SUS — observa Galvão.
Ao fazer pouco caso do drama da falta de saneamento no país, na avaliação do especialista, Bolsonaro também cria um ambiente ainda menos favorável para o investimento em obras nesse setor ganhar espaço na agenda política atual. A meta nacional de universalizar o atendimento à população em 2033 mediante a aplicação de R$ 508 bilhões em serviços de água, esgoto e resíduos sólidos, ao que tudo indica, não será alcançada.
— Provavelmente, a meta vai atrasar em duas ou três décadas devido a falta dos investimentos que eram necessários — acredita Galvão.
Conforme informações compiladas pelo Instituto Trata Brasil, 47% dos brasileiros ainda não contam com coleta de esgoto, e 16% ainda não têm acesso ao fornecimento de água. Como resultado, o SUS registra um número significativo de internações em razão das falhas de infraestrutura: somente as doenças transmitidas pela água somaram, em 2018, 233 mil internações. Destas, cerca de 7,4 mil ocorreram no Rio Grande do Sul, conforme outro estudo do Trata Brasil. Calcula-se que essa assistência hospitalar custe mais de R$ 100 milhões por ano ao SUS. Uma estimativa indica que cada real destinado a saneamento básico resultaria em uma economia quatro vezes maior no sistema de saúde.