O termo “rachadinha” ganhou força no último ano com a investigação contra Flávio Bolsonaro (sem partido), apontado como líder de organização criminosa que teria usado cargos públicos para obter vantagens indevidas. Na prática, a “rachadinha” consiste em conceder vagas no setor público em troca de parte do salário do funcionário.
Professor da Universidade de Brasília (UNB), o cientista político Ricardo Caldas avalia que esse tipo de conduta ocorre pois os parlamentares no país dispõem de elevado número de cargos para preencher nos gabinetes:
— Esses cargos são preenchidos por pessoas de fora. Não são ocupados por pessoas dos quadros dos Legislativos, como, na minha opinião, deveria ser. Como eles têm esse gabinete inteiro, acaba que o orçamento fica muito grande.
Como ocorre a “rachadinha”
Agente público que tem cargos a sua disposição recebe parte dos salários dos ocupantes dos postos. Em alguns cenários, a porcentagem e como o repasse será efetuado é acordado entre ambas as partes.
Como teria ocorrido o caso de “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro
Conforme o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ), o senador Flávio Bolsonaro era o chefe de uma organização criminosa montada na época em que ele atuava como deputado estadual no Rio. Um dos núcleos do esquema atuava na contratação de assessores que seriam coagidos a devolver parte do salário em troca da vaga. Em fevereiro deste ano, Fabrício Queiroz, um dos funcionários de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), admitiu que recebia parte dos vencimentos dos colegas de gabinete. Ele afirmou que usava esse dinheiro para remunerar assessores informais de Flávio, sem o conhecimento do mesmo.
Segundo os investigadores, existia uma clara divisão de tarefas dentro da organização criminosa supostamente chefiada por Flávio: quem nomeava, os operadores financeiros, as pessoas que aceitavam os cargos em troca de devolver parte dos salários e o núcleo que lavava dinheiro.
“Rachadinha” é crime?
Não existe consenso entre juristas se a prática de “rachadinha” é crime. Uma ala afirma que a ação pode ser analisada na área penal, como peculato, concussão ou corrupção. Outra frente diz que o ato de receber parte dos salários dos assessores é apenas improbidade administrativa na busca por enriquecimento ilícito, como explica o professor de Direito Administrativo da UFRGS Juarez Freitas:
— Nesse caso da rachadinha, se o dolo for provado, normalmente, é vantagem patrimonial indevida de agente público. Respondem, em tese, tanto o agente público quanto os terceiros.
O advogado criminalista e doutor em Direito Lúcio de Constantino concorda que a “rachadinha” se enquadra em improbidade administrativa, pois, segundo ele, é uma forma de “enriquecer desregradamente às custas do Estado”. O criminalista destaca que a conduta também pode ser tipificada no âmbito penal, dependendo do caso concreto.
— Pode ter aí um caso de ameaça, apropriação indébita ou estelionato no momento em que você cria um cenário para se favorecer prejudicando, ludibriando o Estado. Tu tens um cenário fechado — explica Constantino.
O advogado pondera que existem dois cenários principais na “rachadinha”. O primeiro, onde o servidor público acorda a devolução de parte do salário. No segundo, o contratado é iludido a devolver parcela do vencimento.
Existe diferença entre “rachadinha” e dízimo dos partidos
Alguns partidos políticos exigem um percentual do salário de filiados que ocupam cargos eletivos ou que foram indicados políticos para cargos de confiança em governos. Nesse caso, a verba não vai para uma pessoa específica, mas sim para a manutenção da sigla. Alguns juristas entendem que a prática difere da rachadinha se não existir obrigação do repasse.
Constantino afirma que o trâmite, popularmente conhecido como dízimo, pode ser irregular em casos onde a doação é compulsória e descontada diretamente na folha de pagamento.
— Ninguém pode me obrigar a pagar algo, descontar algo do meu salário, a não ser o tributo constitucional previsto em lei — afirma.
Nos últimos anos, a Justiça Eleitoral tem adotado postura contrária aos casos onde o dízimo é obrigatório e abatido na folha.
Alguns casos de “rachadinha” no RS
Em 1999, a Câmara Municipal de Porto Alegre cassou o mandato da vereadora Annamaria Gularte por falta de decoro parlamentar. Annamaria era acusada de ficar com parte dos salários dos funcionários de seu gabinete. A vereadora foi flagrada por uma reportagem da RBS TV. As imagens gravadas no ano anterior registraram a devolução à legisladora de parte dos vencimentos por seu chefe de gabinete.
Em 2005, o Ministério Público no Rio Grande do Sul (MP-RS) denunciou a então deputada estadual Floriza Rosa dos Santos por concussão. Entre as supostas irregularidades apontadas pelo MP-RS estava o ato de exigir parte dos salários – entre R$ 500 e R$ 700 – de dois assessores que trabalhavam com ela.
O então deputado estadual e ex-jogador de futebol Mário Jardel teve o mandato cassado na Assembleia Legislativa por quebra de decoro, em 2016. A ação do parlamento gaúcho ocorreu após o MP-RS deflagrar operação contra Jardel. Segundo os investigadores, o ex-jogador estaria exigindo parte do salário dos funcionários. Além disso, ele também teria falsificado diárias e comprovantes de reembolso de combustível e financiado o tráfico de drogas com dinheiro público.