Ao julgar nesta quarta-feira (20) a legalidade do compartilhamento de dados sigilosos entre órgãos de fiscalização e controle, o Supremo Tribunal Federal (STF) vai muito além de uma análise preliminar sobre as suspeitas de envolvimento do senador Flávio Bolsonaro (ex-PSL-RJ) em um esquema de rachadinha na Assembleia Legislativa do Rio. Em jogo está a eficácia da estratégia nacional de combate à lavagem de dinheiro, bem como a adesão do Brasil a acordos internacionais, com possibilidade de exclusão do país de entidades como o G-20, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Os eventuais prejuízos foram listados pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, em manifestação enviada nesta terça-feira (19) à Corte. Durante a sessão, os ministros irão julgar liminar concedida pelo presidente do STF, Dias Toffoli, pela qual foram paralisadas todas as investigações criminais que abrigam dados bancários obtidos sem autorização judicial. A medida atendeu a um pedido de Flávio Bolsonaro, suspeito de receber parte dos salários de assessores quando era deputado estadual.
A controvérsia aumentou porque Flávio ingressou com pedido de liminar em um processo alheio, no qual o MPF recorreu ao STF de uma decisão que havia anulado uma ação penal em que a Receita Federal compartilhou dados com procuradores sem prévia autorização judicial. Na esteira do caso, Toffoli chegou a obter informações sigilosas de 600 mil pessoas físicas e jurídicas, muitas delas autoridades com foro privilegiado. Após enorme polêmica nos meios jurídicos e alegando que pretendia apenas "entender" como se dá o compartilhamento de dados entre órgãos de controle como Coaf e Receita Federal, e não acessá-los diretamente, o ministro acabou revogando o próprio pedido na segunda-feira à noite.
Na véspera do julgamento da liminar, coube a Aras alertar para a repercussão do que será decidido hoje no plenário da Corte. No parecer em que pede revogação da decisão de Toffoli, Aras sustenta que a manutenção do veto ao compartilhamento de informações pode "comprometer tanto a reputação internacional do Brasil quanto sua atuação nos principais mercados financeiros globais". Conforme o procurador, o envio de dados sigilosos sem prévio aval da Justiça está previsto em leis e tem respaldo em acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Aras lembrou que o país é membro do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi), entidade intergovernamental criada com o objetivo de unir esforços contra o crime global. "Sanções pelo eventual descumprimento das recomendações do Gafi oscilariam entre a inclusão do Brasil em listas de países com deficiências estratégicas, passando pela aplicação de contramedidas impostas pelo sistema financeiro dos demais países, podendo chegar até a sua exclusão do Gafi e de outros grupos internacionais engajados no combate à lavagem, tais como o G-20, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, Comitê de Basiléia", avisou o procurador.
A matéria, porém, divide juristas e a própria Corte. Nos bastidores do plenário, a tendência é de que os ministros procurem um caminho alternativo, preservando certo grau de proteção à privacidade financeira sem ameaçar o alcance das investigações.
- O quadro atual permite um mecanismo informal de comunicação entre os órgãos, à revelia da Justiça. Claro que o Estado precisa ter poder investigatório, mas esse poder precisa de limites, e eles são os direitos individuais, cuja restrição deve ser regrada pela lei - afirma o advogado Luciano Feldens.
A origem da polêmica
- A investigação contra o filho do presidente Jair Bolsonaro começou com um relatório do antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) ao Ministério Público (MP) fluminense.
- No documento, o órgão demonstrava uma movimentação atípica de R$ 1,2 milhão na conta bancária de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio.
- Ao todo, o Coaf produziu seis relatórios antes de o MP conseguir quebrar o sigilo bancário e fiscal dos envolvidos, entre eles 88 ex-funcionários do gabinete do parlamentar.
- Como não havia autorização judicial para acessar os dados antes da produção dos relatórios pelo Coaf, a defesa de Flávio alegou que a comunicação com os bancos havia sido ilegal.
- Com base nesses argumentos, os advogados tentaram suspender a investigação na Justiça do Rio e até mesmo no STF, sem sucesso.
- Todavia, Toffoli acatou o pedido de Flávio, estendendo a decisão para todo território nacional. Com isso, somente no âmbito do Ministério Público Federal estão suspensas atualmente 935 investigações.
- Entre os casos atingidos estão apurações da Lava-Jato no Rio, ações penais envolvendo políticos e contraventores, como o ex-governador de Goiás Marconi Perillo (PSDB) e o bicheiro Carlinhos Cachoeira, entre outros casos de corrupção e lavagem de dinheiro.