Em visita ao Estado para participar das comemorações pelos 10 anos de operação do grupo CMPC, em Guaíba, o embaixador do Chile no Brasil, Fernando Schmidt, faz um diagnóstico da crise que convulsiona as ruas do país. Nas últimas três semanas, protestos violentos já provocaram a morte de 20 pessoas e levaram o presidente Sebastián Piñera a trocar oito ministros e prometer reformas para reduzir a desigualdade social.
Para Schmidt, as manifestações são resultado de fracassos como o sistema previdenciário e os altos custos dos medicamentos para uma população cada vez mais envelhecida. O diplomata, contudo, acredita que a revolta abre espaço para um novo pacto social no país. A seguir, os principais trechos da entrevista.
O senhor veio ao Estado para celebrar uma das empresas que mais investiram no Rio Grande do Sul nos ultimo anos. Em contrapartida, o Chile está em chamas. Os protestos podem inibir os investimentos estrangeiros no país?
Sempre podem atrapalhar. Mas essa instabilidade tem um futuro promissor.
Mas as últimas medidas não surtiram efeito. O governo tem perspectiva de uma pacificação no curto prazo ou pode haver uma renúncia no presidente Sebastian Piñera?
O governo está fazendo todos os esforços possíveis para estabelecer diálogo com a oposição, com ONGs, grupos sociais, dizendo que é preciso recriar um pacto para formar um país socialmente mais justo. O gabinete foi renovado com a mudança de oito ministros, a idade média dos novos é 42 anos. Nos últimos dias já passaram algumas leis no Parlamento como resultado desse diálogo. Os protestos continuam, mas temos toda confiança que um novo contrato social vai surgir e um novo Chile também.
Os manifestantes que estão nas ruas querem esse novo pacto social ou a renúncia do presidente?
Alguns querem a renúncia, mas são grupos isolados. Em geral, cada grupo protesta por uma questão específica, como ciclistas que querem melhores ciclovias, outros não querem pagar pedágio, outros exigem aposentadorias melhores. São manifestações legítimas das democracias. É a única forma de resolvermos nossos problemas.
O que deflagrou essa onda de insatisfação popular?
Um dos componentes é relacionado com o sucesso que o Chile teve em políticas para reduzir drasticamente a pobreza, que caiu de 68,5% para 8,6%. Também houve redução dos índices de desigualdade, que caiu de 0,57 para 0,46. Os salários mais baixos cresceram 400% nos últimos anos. É um incremento importante de uma classe média que se vê ameaçada com alguns fracassos. As aposentadorias são um desses fracassos. O preço dos medicamentos, outro, além das passagens de transporte público, tarifas de eletricidade, corrupção, ganhos obscenos de grupos privilegiados. Então a classe média se rebelou frente a essa ameaça de voltar à pobreza que já havia superado.
O governo colocou o Exército nas ruas. Isso piorou a situação?
Os protestos são bem-vindos. A violência, não. Qualquer governo tem o monopólio de proteger todos os seus cidadãos, um pequeno empresário que tem uma pequena loja e a viu ser destruída pelo vandalismo. Um sistema de metrô é neutro, não tem viés político. A quem beneficia esse vandalismo? Ele só prejudica os mais pobres.
O Chile é citado pelo governo brasileiro como exemplo de economia bem sucedida. Que exemplos o país pode dar ao Brasil para evitar uma conflagração semelhante?
Não existem países que podem dar exemplos. As sociedades são diversas, mas a liberdade precisa ser componente central. Mas essa liberdade não pode ser às custas de injustiça social. Está claro que no Brasil o liberalismo não pode ser atingido nos níveis purismo ortodoxo que se pretendia no princípio. Isso ficou refletido na discussão da Previdência.
Há protestos no Chile, na Bolívia, no Equador. Há um desequilíbrio social no continente?
Não só aqui. Há protestos no Líbano, no Iraque, em Hong Kong, o Brexit no Reino Unido, os coletes amarelos na França. Há um mal-estar social, um nível de insatisfação por trás dessa eclosão. O que está acontecendo é um individualismo. Cada vez mais as pessoas não confiam nas instituições intermediárias, seja família, escola, Estado, Judiciário, Congresso. Todas essas instituições são, para o indivíduo, sintoma de opressão. Não necessariamente é algo ideológico. É mais sociológico. Quando uma pessoa fica horas trancada no trânsito, é o urbanismo que fracassou. Por causa da nossa geografia, sofremos no Chile muitos terremotos. Hoje vivemos um terremoto social.