Não é verdade que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) "bateu recorde" de despesas com cartão corporativo, ou que consumiu R$ "8,2 milhões" do dinheiro público no cartão, como dizem postagens que viralizaram no Twitter desde domingo (26).
Segundo dados do Portal da Transparência, a Secretaria de Administração da Presidência da República gastou cerca de R$ 4,6 milhões de fevereiro a setembro deste ano. O montante não é um "recorde", visto que em 2014, sob gestão de Dilma Rousseff (PT), o órgão gastou R$ 7,9 milhões. Os valores foram corrigidos pela inflação.
No entanto, o valor total gasto pela Secretaria de Administração neste ano é o maior registrado desde 2014. A Secretaria é o órgão do governo federal por meio do qual são feitas, entre outras, as despesas do gabinete pessoal do presidente.
O Comprova verificou postagens feitas no Twitter pelos perfis do youtuber Felipe Neto, de @EricoDietrich e @charlesnisz.
Para o Comprova, enganoso é o conteúdo que confunde ou que seja divulgado para confundir, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Como verificamos
A verificação começou com uma busca dos gastos da Secretaria de Administração da Presidência da República no Portal da Transparência, que permite a qualquer pessoa uma consulta aos gastos do governo federal.
No entanto, o portal só mostra os gastos com cartões corporativos a partir de 2013. Para conseguir informações sobre anos anteriores, solicitamos estes dados à Secretaria-Geral da Presidência da República.
Todos os valores foram corrigidos pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), índice oficial que mede a inflação do período.
Quanto Bolsonaro gastou com o cartão?
Os gastos do cartão corporativo do Governo Federal são realizados por servidores dos diferentes órgãos e ministérios. Como gastos do presidente Bolsonaro, foram consideradas as despesas da Secretaria de Administração da Presidência da República, o que não significa que o próprio presidente tenha realizado a despesa.
O Comprova obteve informações sobre gastos com cartão corporativo de duas bases de dados do governo federal: o Portal da Transparência, que tem dados sobre cartões a partir de 2013, e o Sistema de Suprimento de Fundos (Suprim), que possui dados desde 2003. Estas fontes usam critérios diferentes para registrar as despesas.
As despesas com cartão corporativo que aparecem no Portal da Transparência foram feitas no mês anterior em que foram registradas. Ou seja: um gasto que aparece no portal como sendo de setembro foi feito, na verdade, em agosto. É semelhante ao que acontece em faturas de cartão de crédito comum, por exemplo.
Assim, para sabermos quanto foi gasto no atual governo, não foram incluídas as despesas com cartão corporativo que aparecem no Portal da Transparência como sendo de janeiro de 2019 — já que correspondem a gastos de dezembro de 2018, quando Bolsonaro ainda não tinha tomado posse.
Com isso, levantamos as despesas da Secretaria de Administração da Presidência entre fevereiro e setembro (último mês disponível para consulta). Neste período, com a correção pelo IPCA, o órgão gastou R$ 4.649.787,28 com o Cartão de Pagamento do Governo Federal (CPGF), conhecido popularmente como cartão corporativo.
Os dados do Suprim mostram que a Secretaria de Administração da Presidência teve, de janeiro a agosto deste ano, gastos com cartão corporativo um pouco maiores: R$ 5.041.609,76. Isso ocorre porque o sistema também contabiliza as devoluções de saque e eventuais restituições de crédito.
E, diferentemente do Portal da Transparência, o Suprim registra os gastos no mês em que eles ocorreram.
Além disso, os dados do Suprim enviados ao Comprova se referem apenas aos gastos sigilosos, enquanto as informações do Portal da Transparência consideram todos os gastos efetuados.
Os valores totais da gestão pública são abertos, mas há sigilo sobre despesas consideradas de segurança nacional, como a alimentação e o transporte do presidente e do vice-presidente.
Como comparação, dos valores do Portal da Transparência de 2019, dos R$ 4,6 milhões gastos pela Secretaria de Administração da Presidência, R$ 4,5 milhões foram sigilosos.
Além dos gastos do gabinete pessoal do presidente, a Secretaria de Administração é responsável por executar parte das despesas de outros órgãos, como a Secretaria-Geral da Presidência, Casa Civil e Secretaria de Governo.
Quanto outros presidentes gastaram?
Os dados do Portal da Transparência e do Suprim mostram que Bolsonaro não é, até este ponto de seu mandato, o recordista de gastos com cartão corporativo nos primeiros nove meses de governo, mas teve a maior despesa deste tipo desde 2014.
Segundo o Portal da Transparência, entre fevereiro e setembro de 2014, no governo Dilma, a Secretaria de Administração da Presidência gastou, em valores corrigidos pelo IPCA, R$ 7,9 milhões com cartão corporativo.
Veja no gráfico abaixo as despesas desde 2013, todas corrigidas pelo IPCA.
Já de acordo com o Suprim, de janeiro a agosto de 2014, a Secretaria de Administração da Presidência teve R$ 8,3 milhões de gastos sigilosos com cartão corporativo.
Como mostra o gráfico abaixo, elaborado com base nas informações do Suprim, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) gastou mais em 2009.
Antes de 2008, os gastos com cartão corporativo alcançaram valores mais altos que os atuais. Os maiores gastos foram em 2003, R$ 8,3 milhões; em 2004, R$ 10,1 milhões; e em 2006, R$ 8,4 milhões.
No entanto, o decreto 6.370 de 2008 impôs restrições ao uso dos cartões para despesas relativas a viagens (compra de passagens por meio de agências, diárias, hospedagem e transporte) e saques, o que pode ter contribuído para a redução dos gastos nos anos seguintes.
Outra mudança, segundo a CGU (Controladoria-Geral da União), foi um decreto de 2009, que definiu os valores das diárias para ministros de estado em viagem dentro do país e fez com que, nessa circunstância, o cartão não mais pudesse ser utilizado para pagamentos de hospedagem e alimentação.
E, em 2018, foram alterados os limites de gastos com cartão de pagamento, em decorrência do decreto que aumentou os limites dos valores de cada modalidade de licitação.
Para despesas de pagamento imediato relativas a compras e serviços, o valor máximo passou de R$ 800 para R$ 1.760. Já para despesas com obras e serviços, o valor passou de R$ 1.500 para R$ 3.300.
Quando o valor, ainda que pago com cartão de pagamento, passa pelo processo de empenho, os valores máximos são maiores: chegando a R$ 17.600 para compras e serviços e R$ 33.000 para obras e serviços de engenharia.
Os gastos incluem o vice-presidente?
Nos gastos com cartão corporativo da Secretaria de Administração da Presidência, segundo informação da Secretaria Geral da Presidência, estão incluídos gastos realizados pelo vice-presidente apenas quando este está no exercício do cargo de presidente da República.
Fora dos períodos em que o vice-presidente exerce a função de presidente, os gastos são contabilizados pelo Gabinete da Vice-Presidência da República, que de fevereiro a setembro de 2019 teve gastos no total de R$ 469,5 mil.
Em 20 de outubro, o presidente Jair Bolsonaro questionou um texto do Antagonista, segundo o qual a Presidência aumentou 24% os gastos com cartões. Em tuíte, o presidente afirmou que "os gastos com cartões incluem as despesas do Presidente e do Vice".
No Orçamento, os gastos do Gabinete da Vice-Presidência fazem parte do órgão superior chamado "Presidência".
No entanto, os valores divulgados pela reportagem do Globo não se referem aos gastos do órgão superior da Presidência, mas sim da Secretaria Especial de Administração da Presidência.
Para que serve o cartão corporativo?
O cartão corporativo foi criado em 2002, no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), por meio de uma portaria.
No início do primeiro mandato do governo Lula, portanto, era o segundo ano de vigência do uso dos cartões.
A função do cartão é facilitar o pagamento de despesas pontuais e ou de gastos que devam ser pagos no ato da compra, como os realizados durante viagens.
Antes da existência dos cartões, esses gastos já existiam. Com os cartões, a principal mudança foi a forma como esse pagamento ocorre, não no gasto em si.
De acordo com Gil Castello Branco, da ONG Contas Abertas, "se não tivesse o cartão corporativo, teria que continuar fazendo o gasto". Ele dá como exemplo uma operação da Polícia Federal em que surja uma viagem urgente para outro estado.
— Tem que comprar passagem de avião, como seria feito? Não teria como fazer nota de empenho e depois pagamento — afirma ele.
No processo normal de compras por órgãos públicos, antes de realizar um gasto, é preciso fazer um empenho. O empenho funciona como uma reserva do valor, dentro do orçamento, para garantir que não serão feitos gastos que posteriormente o governo não possa pagar.
Além disso, para a maior parte das compras e contratações feitas pelo setor público, a lei determina realizar uma licitação, que pode levar meses até ser concluída. Nesse processo, diferentes empresas podem fazer ofertas e uma delas é escolhida.
No entanto, para gastos pontuais ou de caráter urgente, nem sempre é possível fazer o empenho antes da compra, ou vantajoso realizar uma licitação. Ainda assim, em qualquer caso, é preciso que seja observado o interesse público do gasto.
Cartão corporativo x Bolsa Família
Além das postagens sobre os supostos recordes de gastos de Bolsonaro, um outro tuíte que viralizou buscava ligar as despesas com cartão corporativo ao Bolsa Família. Segundo a postagem, o valor gasto pelo presidente com o cartão corporativo "poderia pagar o benefício para 2.430 famílias ou 7.293 pessoas por mês". Essa conta não é explicada pelo tuíte.
O cálculo parte da premissa de que Bolsonaro gastou, em média, R$ 460 mil com cartão corporativo por mês. Esse número então é dividido pelo valor médio do benefício do Bolsa Família em setembro, que foi de R$ 189,21. Essa divisão dá 2.431, número próximo ao citado na postagem, de 2.430 famílias.
Para chegar ao número de "7.293 pessoas", o autor levou em conta que cada família do programa social tem três pessoas — mas o autor do post não explica como chegou a essa conclusão.
Após escândalos, normas ficaram mais rígidas
Desde que passaram a ser usados em 2002, os cartões corporativos foram motivo de diversos escândalos envolvendo integrantes do governo.
Em fevereiro de 2008, após ameaça da então oposição ao governo Lula de instalar uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar gastos irregulares com o cartão, o governo publicou um novo decreto com o objetivo de limitar o uso do cartão e evitar abusos.
Ainda assim, a CPI foi instalada e durou três meses. Como resultado de uma de suas recomendações, em outubro de 2008, a CGU (Controladoria-Geral da União) lançou um manual com orientações para os funcionários e detentores de cargos públicos sobre o uso adequado dos cartões corporativos.
Um dos pontos mais questionados em relação aos gastos, no entanto, continua sem alteração: os detalhes da maior parte dos gastos realizados pelos gabinetes da Presidência e Vice-Presidência são mantidos sigilosos durante o mandato, sob a alegação de "questões de segurança".
À época, uma regra baixada em dezembro de 2003 pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência impediu o acesso aos detalhes dos gastos.
Em 8 de agosto deste ano, após criticar a cobertura da imprensa, o presidente Jair Bolsonaro prometeu divulgar seus gastos pessoais com o cartão corporativo, o que ainda não aconteceu.
— Eu vou abrir o sigilo do meu cartão para vocês tomarem conhecimento quanto gastei de janeiro até o final de julho. Ok, imprensa? Vamos fazer uma matéria legal? — afirmou ele na ocasião.
Segundo ele, o objetivo é desmentir acusações de que teria gasto cerca de R$ 1 milhão por mês. Na transição de governo, a equipe do presidente chegou a cogitar a extinção do cartão, mas desistiu.
Repercussão nas redes
O tuíte dizendo que Bolsonaro bateu "recorde de gasto em cartão corporativo" foi publicado pelo youtuber Felipe Neto no domingo (27). Até quarta (30), a postagem tinha mais de 62 mil interações.
A mesma afirmação aparece no título de um texto do site Esquerda Diário publicado no sábado (26). Segundo a ferramenta Crowdtangle, que acompanha o comportamento de um link nas redes sociais, o texto teve mais de 31,3 mil interações no Facebook até quarta-feira (30).
Já a publicação dizendo que Bolsonaro gastou "8,2 milhões" — enquanto Lula e Dilma teriam gasto, respectivamente, 300 mil e 350 mil — no cartão corporativo em nove meses de mandato foi feita pela conta @EricoDietrich no sábado (26). O post tinha mais de 24 mil interações até terça-feira.
Conteúdo semelhante foi compartilhado pela conta @charlesnisz, no dia 28, e alcançou mais de 22,5 mil interações até o dia 30. Em resposta ao Comprova, o usuário informou que usou o perfil de Erico Dietrich como fonte.
O tuíte que relacionava o gasto com cartão corporativo ao Bolsa Família foi publicado no dia 21 pela conta @antifa1982. Até terça, teve cerca de 4,6 mil interações.
O Comprova enviou mensagens aos autores dos tuítes ao longo dos últimos dias, mas só teve resposta de @charlesnisz até a publicação deste texto.
Projeto Comprova
A verificação exposta nesta reportagem foi conduzida pelo Projeto Comprova, uma coalizão formada por 24 veículos de mídia, incluindo GaúchaZH, para combater a desinformação sobre políticas públicas federais. A apuração deste texto foi feita por Jornal do Commercio, UOL, Correio da Bahia,Rádio BandNews FM, Folha de S.Paulo e Estadão, e verificada, por meio do processo de rechecagem, por outros cinco veículos: GaúchaZH, A Gazeta, BandTV, Poder360 e O Povo.