Dois meses após o primeiro vazamento das conversas dos procuradores da Lava-Jato, o Supremo Tribunal Federal (STF) abre um precedente jurídico que ameaça condenações impostas aos envolvidos nos desvios de recursos da Petrobras. Para a força-tarefa da Lava-Jato, na hipótese de o entendimento ser estendido para todas as ações penais, poderão ser anuladas 32 sentenças, envolvendo 143 dentre 162 réus condenados.
Sentenciado duas vezes em primeira instância, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi a primeiro a pedir à Corte tratamento idêntico ao conferido ao ex-presidente da estatal Aldemir Bendine, cuja pena em regime fechado foi anulada terça-feira (27). Outros presos célebres, como o ex-ministro José Dirceu, o ex-tesoureiro do PT João Vaccari e o ex-deputado Eduardo Cunha, estudam recorrer ao mesmo expediente.
Por três votos a um, os ministros entenderam que o processo contra Bendine deve ser devolvido à primeira instância e ser julgado de novo, por cerceamento à ampla defesa do réu. Ele havia sido foi condenado a 11 anos de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro por receber R$ 3 milhões em propina da Odebrecht. Mais tarde, foi absolvido da acusação de dinheiro no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e teve a pena diminuída para sete anos, nove meses e 10 dias, escapando do regime fechado.
De acordo com o entendimento do colegiado, o executivo foi prejudicado ao apresentar suas alegações finais no mesmo prazo que os réus que haviam celebrado acordo de delação premiada. Como essa é a última vez que as partes se manifestam antes da decisão final do juiz, o acusado que não se tornou delator ficaria vulnerável a acusações de última hora feitas pelo colaboradores do Ministério Público Federal.
— Esse é um princípio basilar do Direito, algo tão óbvio que praticamente se tornou um senso comum. A defesa sempre fala por último. Como um acusado vai se defender se não conhece parte da acusação? — comenta o advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, cuja carteira de clientes tem cerca de 20 acusados na Lava-Jato.
A decisão da 2ª Turma surpreendeu o universo jurídico pelo ineditismo, mas nos bastidores do STF já era esperada. Há um descontentamento crescente no tribunal com o conteúdo das conversas dos membros da Lava-Jato, sobretudo as críticas e tentativas furtivas de investigação de ministros da Corte, como Gilmar Mendes e Dias Toffoli. A surpresa foi o voto pró-Bendine de Cármen Lúcia, cuja histórico no colegiado sempre foi de apoio às ações da Lava-Jato.
— Cresce cada vez mais a teoria jurídica de que houve parcialidade do juiz Moro e motivação política dos procuradores. A revelação das conversas da força-tarefa está começando a fazer efeito — diz o jurista Gilson Dipp.
Advogado de Lula, Cristiano Zanin Martins acompanhou todo o julgamento da plateia do tribunal e, menos de 24 horas depois, ingressou com novo recurso em favor do cliente. Martins pediu a anulação das sentenças nos processos do sítio de Atibaia e do triplex do Guarujá, bem como a nulidade da ação em que o petista é acusado de receber propina da Odebrecht por meio de uma sede para o Instituto Lula e de um apartamento em São Bernardo do Campo.
Para Dipp, o entendimento firmado pela 2ª Turma não cria jurisprudência automática na Corte, portando não haveria garantias de que passará a ser repetido em todos os casos semelhantes. O ex-ministro do STJ acredita que as decisões serão tomadas caso a caso, conforme as especificidades de cada processo. Dipp, porém, enxerga na decisão uma "construção criativa" do que diz a Lei das Organizações Criminosas, na qual estão estabelecidos os parâmetros legais da delação premiada.
— A colaboração é um instituto novo, ainda está se construindo uma doutrina e uma jurisprudência. Ela foi inspirada em outros países, não houve adequação ao nosso sistema jurídico, e já foi sendo empregada em uma operação gigante, como a Lava-Jato. Só que não há na lei menção à diferença em relação ao réu delator e ao réu delatado. Portanto para mim essa foi uma interpretação ousada dos ministros — comenta.
O que diz a força-tarefa da Lava-Jato
Em nota, a força-tarefa da Operação Lava-Jato, do MPF, afirmou que considera que o STF revisará a sua decisão, pois julga que a regra aplicada "nunca tinha sido expressada em nosso direito". Confira a nota na íntegra:
1. A decisão proferida ontem pelo Supremo Tribunal Federal anulou a condenação de Aldemir Bendine na Lava Jato porque a sua defesa apresentou alegações finais no mesmo prazo da defesa de réus colaboradores. Nessa ação penal, a defesa do réu pediu expressamente para apresentar as alegações finais em momento subsequente àquele dos colaboradores.
2. A regra aplicada pelo Supremo Tribunal Federal não está prevista no Código de Processo Penal ou em outras leis. O entendimento daquela corte derivou de sua compreensão da Constituição, no caso concreto, a partir dos princípios da ampla defesa e contraditório. A força-tarefa, respeitosamente, discorda do referido entendimento porque: aplicou para o passado regra que aparentemente nunca tinha sido expressada em nosso Direito pelos Tribunais e que, se fosse aplicada pelo juiz, poderia por si só ter gerado a anulação do caso em instâncias inferiores justamente diante da ausência de expressa previsão legal; não houve demonstração de prejuízo à defesa e não se deve presumir prejuízo segundo a jurisprudência do próprio Tribunal; viola a isonomia entre os corréus; a palavra de colaboradores jamais é suficiente para uma condenação criminal, situação que seria distinta caso houvesse a apresentação de documentos incriminadores com as alegações finais, o que não ocorreu; e cria situações nebulosas e fecundas para nulidades (por exemplo: e se o réu decidir confessar ou colaborar nas alegações finais? E se corréus implicarem uns aos outros?).
3. Assim, a força-tarefa confia que o Supremo reverá essa questão, inclusive para restringir a sua aplicação para casos futuros ou quando demonstrado prejuízo concreto, de modo a preservar os trabalhos feitos por diferentes instâncias em inúmeros casos de acordo com a lei e entendimento dos Tribunais até então vigente.
4. Na hipótese de o entendimento do caso Bendine ser estendido para todas as ações penais em que houve prazo comum para a apresentação de alegações finais de réus colaboradores e delatados, poderão ser anuladas 32 sentenças, envolvendo 143 dentre 162 réus condenados pela operação Lava Jato. Não houve tempo para precisar quantos seriam beneficiados, contudo, se o entendimento for restringido para réus que expressamente pediram para apresentar alegações finais em momento subsequente àquele dos colaboradores. Esta última análise está sendo realizada.