Um pai de família jovem, religioso, carismático e imbuído do dever cívico de combater a roubalheira que assola o país. Por cinco anos, essa foi a imagem projetada de Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava-Jato no Paraná. O que parecia uma cruzada épica contra um do maiores escândalos mundiais de corrupção pode culminar agora no afastamento de Dallagnol do Ministério Público Federal (MPF).
Em sessão prevista para esta terça-feira (13), o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) analisa duas representações contra o procurador. Nos bastidores, há uma movimento orquestrado para não puni-lo pela forma como atuou nos processos contra boa parte da elite política e empresarial do país, revelada após o vazamento de mensagens trocadas pelos integrantes da força-tarefa em um aplicativo de celular.
Dallagnol é alvo de nove ações no CNMP. Na reunião, marcada para as 9h, estão na pauta uma reclamação disciplinar e um processo administrativo disciplinar (PAD). A reclamação foi apresentada pelo senador Renan Calheiros (MDB-ASL), e o PAD foi instaurado a pedido do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli. Há ainda a possibilidade de apreciação de um terceiro expediente, aberto pela corregedoria do órgão para investigar se ele lucrou de forma irregular com palestras ministradas sobre a Lava-Jato.
Criado para efetuar o controle externo do Ministério Público em todo o país, o CNMP é formado por 14 pessoas. Oito delas têm origem na própria categoria. As outras seis são indicadas por tribunais superiores, pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelo Congresso Nacional. Embora os membros do MP formem maioria, poucas vezes se viu no colegiado tamanha disposição para punir um procurador como no caso específico de Dallagnol.
Um dos principais articuladores da pressão sobre ele é Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, servidor de carreira do Senado e que foi guindado ao posto por Renan Calheiros, crítico contumaz da Lava-Jato e desafeto do procurador. Relator de uma das representações contra Dallagnol, Mello Filho tem cabalado votos para que Dallagnol não fique incólume à sucessão de denúncias. Pelo menos três ministros do STF (Toffoli, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes) também têm pressionado os conselheiros a tomar alguma atitude. Até agora, nenhuma representação contra Dallagnol gerou punição. Em conversas reservadas, integrantes do MPF admitem que o espírito de corpo predomina em julgamentos semelhantes.
Desta vez, porém, o ambiente está mais turvo para Dallagnol. Embora o órgão seja presidido pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, não há garantia de que ela ainda tenha influência suficiente para manter a blindagem do aliado. Tampouco haveria boa vontade de Raquel com o subalterno, sobretudo após a revelação de que Dallagnol planejava vazar informações à imprensa como forma de pressioná-la para homologar a delação do ex-presidente da OAS Leo Pinheiro.
Também pesam contra o chefe da Lava-Jato as restrições acumuladas nos últimos anos no topo da categoria à forma de atuação do colega. O messianismo exacerbado, a compulsão por mídia e as palestras remuneradas do grupo que atua no Paraná sempre foram vistos com reservas por procuradores que atuam em instâncias superiores. Para esses membros do MPF, a revelação das conversas da força-tarefa no Telegram confirmou suspeitas e tornou insustentável a permanência de Dallagnol à frente da operação.
Quem circula pelos corredores do CNMP afirma que o meio mais eficiente a ser utilizado contra Deltan é o PAD proposto pelo STF. Como já se trata de um processo instaurado _ e não apenas reclamação disciplinar, a exemplo das demais representações —, estaria em grau mais avançado dentro do conselho e teria por autor um poder da República, e não algum algoz político das investigações. A ideia seria afastá-lo liminarmente das funções até a conclusão do caso, situação em que o procurador seguiria recebendo salário mas sem trabalhar. Uma hipótese mais branda seria retirá-lo somente do posto de coordenador da força-tarefa, mas essa possibilidade afeta o princípio da inamovibilidade, um dos mais caros ao MP e pelo qual um membro da corporação não pode ser afastado do seu ofício sob pena de abrir margem a ingerências políticas às investigações.
Procurada, a Associação Nacional dos Procuradores da República não deu retorno ao pedido de entrevista. Em nota oficial, a entidade tem defendido Dallagnol e afirmado que as conversas são objeto de crime cibernético, portanto, não podem ter a autenticidade confirmada. Em contrapartida, a Associação Brasileira dos Juristas pela Democracia (ABJD), autora de uma das representações no CNMP, pediu oficialmente que os integrantes da força-tarefa entreguem os celulares para perícia. Nenhum procurador aceitou apresentar o aparelho.
— O que estamos vendo é que não foi algo aleatório. Os procuradores praticaram, por baixo dos panos, atos claros de promiscuidade. Todos têm tipificação penal. São crimes cometidos por quem agia como se fosse uma organização criminosa. Não há precedentes desse tipo de atuação pelo menos desde a Constituição de 1988 — afirma o advogado Nuredin Allan, dirigente da ABJD.
A composição do CNMP
Os órgãos de origem dos membros do colegiado
PGR — Raquel Dodge
MP Estadual — Orlando Moreira, Fábio Stica e Lauro Nogueira
MPF — Silvio Amorim Júnior
MPM — Marcelo Rabello de Souza
MPT — Sebastião Caixeta
MPDFT — Dermeval Farias Gomes Filho
OAB — Leonardo Accioly da Silva e Erick Lima do Nascimento
Câmara — Otávio Luiz Rodrigues Jr.
Senado — Luiz Bandeira de Mello Filho
STF — Valter Shuenquener de Araújo
STJ — Luciano Nunes Maia Freire
As ações na pauta da sessão do CNMP
Há nove representações contra Deltan Dallagnol no Conselho Nacional do Ministério Público. Duas estão na pauta da próxima sessão do colegiado, mas há ainda denúncias apresentadas pelo PT, por parlamentares, por entidades como a Associação Nacional de Desembargadores (Andes) e a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABDJ), além de um expediente instaurado pela corregedoria do órgão.
Processo disciplinar
Representação apresentada pelo presidente do STF, Dias Toffoli, após Deltan Dallagnol afirmar, em entrevista à Rádio CBN, em agosto de 2018 que Gilmar Mendes, o próprio Toffoli e Ricardo Lewandowski formavam "panelinha" e demonstram leniência em favor da corrupção. O relator do processo é Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, ligado ao senador Renan Calheiros. Quando a reclamação de Toffoli chegou ao colegiado, o processo foi aberto por 10 votos a 4.
Reclamação disciplinar
Espécie de inquérito, a reclamação é a primeira etapa para averiguar se há elementos para abertura de um processo administrativo disciplinar (PAD). Foi apresentada por Renan Calheiros. O senador afirma que Dallagnol fez campanha contra ele no Twitter, atacando sua imagem durante a eleição à presidência do Senado, no início do ano. Em uma das mensagens, o procurador dizia que, se eleito, Renan dificultaria o combate à corrupção.