Um dos principais nomes da esquerda mundial, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos acredita que os partidos progressistas perderam a conexão com a periferia. Crítico da Lava-Jato, amigo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem visitou em Curitiba, no ano passado, o pesquisador e escritor acredita que as democracias estão em crise em razão da ação de forças conservadoras lideradas pelos Estados Unidos, como parte de sua guerra comercial e por hegemonia geopolítica com a China, potência em ascensão no sistema global. Em junho, Boaventura esteve no Rio Grande do Sul, quando participou de debate Ecologia dos Saberes, como parte da programação de combate ao trabalho infantil, evento com apoio do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Na ocasião, concedeu a seguinte entrevista a GaúchaZH.
Estamos em um contexto internacional com características adversas em relação a conquistas democráticas, aos direitos sociais, à saúde e à educação. O Estado perdeu soberania porque se subordinou ao capital financeiro.
A História costuma ser pendular, ora com predominância de governos conservadores, ora de esquerda. Como se deu a guinada pró-direita atual em vários países?
A história é feita de pêndulo, nós é que pensamos que ela é um progresso contínuo e que as conquistas são irreversíveis na democracia e nos direitos sociais. Estamos em uma fase de retrocesso, e percebo isso particularmente no continente latino-americano, o único no qual, entre os anos 2000 e a metade dos 2010, reduziram-se a pobreza e a desigualdade. O freio nesse avanço se deve a vários fatores. O principal é que estamos em um contexto internacional com características adversas em relação a conquistas democráticas, aos direitos sociais, à saúde e à educação. Domina, hoje, a fração mais antissocial do capital em nível internacional, que é o capital financeiro. O capital produtivo depende dos trabalhadores. Os produtores têm de cuidar de seus trabalhadores, que têm de ter direitos para produzir bem. Portanto, há uma dimensão social no capital produtivo. E isso não existe no capital financeiro, que produz riqueza a partir do dinheiro. O capital financeiro não se organiza a partir de fábricas e empresas. Ele basicamente é composto de telas de computador, diante das quais os CEOs podem ficar milionários de um dia para o outro e da maneira mais antissocial – porque eles não tratam com pessoas, mas com números e bolsas de valores. As consequências sociais dos números estão ocultas nas telas dos computadores. O Estado se subordinou demais às regras do capital financeiro, deixando de financiar políticas públicas por impostos e, assim, tendo de recorrer à dívida pública. O problema é que, quando o Estado cobra impostos, trata-se de uma atitude soberana: ele pode cobrar ou não. Quando contrai uma dívida no mercado internacional, não está sendo soberano. Não é ele que determina as taxas ou fatores de risco. São as agências internacionais.
O Estado perdeu soberania?
Sim. Porque se subordinou ao capital financeiro. Para dar a resposta às agências internacionais, o Estado tem de fazer cortes nas políticas sociais. Vem daí o empobrecimento da população. Os oito homens mais ricos do mundo têm tanta riqueza quanto a metade mais pobre da humanidade. É um desequilíbrio que nunca havia acontecido. E não há no horizonte nenhuma política que faça frente a isso.
Esse momento histórico é o que o senhor chama de interregno da globalização, certo?
Exatamente. No interregno, dá-se o domínio do capital financeiro. Ocorre sobretudo nos momentos em que o capital produtivo entra em crise porque não há inovação tecnológica. Tivemos uma globalização, de 1989 até hoje, que foi assentada em inovações – os celulares, os computadores –, que prometeram rentabilidade enorme ao capital produtivo. Essa rentabilidade está diminuindo porque os objetos são cada vez mais baratos. Quando essa perda de rentabilidade do capital produtivo se dá, começa a rivalidade entre os países. Foi assim na Europa, provocando guerras mundiais. Neste momento, a crise se manifesta por meio de uma rivalidade entre EUA e China. Vem aí outra onda de globalização, assentada em inovação tecnológica e em inteligência artificial, robótica e automação. E a China está muito bem posicionada para dominar essa onda.
Os EUA se deram conta muito tarde de que o capital internacional vai migrar para a China. Foi devido à miopia. Na década em que a América Latina teve significativa redução da pobreza, os EUA estiveram no pântano do Iraque.
O capital internacional está migrando para a China.
Vai migrar para lá. E os EUA se deram conta muito tarde. Foi devido à miopia. Há 35 anos vivo metade do ano nos EUA e vejo essa miopia do governo norte-americano. Na década em que a América Latina teve significativa redução da pobreza, eles (os EUA) estiveram no pântano do Iraque.
Ou seja, descuidando da América Latina como região para exercer sua hegemonia?
Deixando o continente de lado. Ao mesmo tempo, houve a penetração da China, que é hoje o grande investidor e também o maior parceiro comercial de Brasil e Argentina. Os EUA estão tentando controlar a situação à sua maneira – com controle de danos, com interferências no mercado. E isso na Europa, também. Estão fazendo pressão sobre a União Europeia (UE) para que a nova onda do 5G não seja dominada pela China. É evidente que, em uma situação dessas, as leis de mercado não funcionam. Voltamos à ideia do protecionismo arrogante, das potências mais fortes. Há dois impérios, um ascendente, a China, e outro decadente, os EUA. Eles estão a digladiar-se de maneira brutal. E, naturalmente, o império ascendente é sempre o que entra de forma propositiva. Há uma nova rota da seda, com investimento massivo entrando em todo o mundo.
Voltamos à ideia do protecionismo arrogante, das potências mais fortes. Há dois impérios, um ascendente, a China, e outro decadente, os EUA. Eles estão a digladiar-se de maneira brutal.
O senhor está dizendo que o capitalismo dos EUA ficou para trás.
O capitalismo dependente dos EUA é mais violento, neste momento, porque não tem nada a oferecer. Perdeu a competição para a China, aliás, devido às próprias grandes empresas norte-americanas. Calcula-se que haja 1,2 milhão de pessoas na China trabalhando apenas para a Microsoft e a Apple. Veja a dificuldade que há em fazer qualquer protecionismo em relação à China, porque ela já avançou demais. A luta dos dois gigantes é por alinhamento: eles querem que seus aliados estejam ao seu lado. Os EUA, particularmente, nessas duas zonas de influência: Europa e América Latina. O Brasil entra nesse jogo de forças. O que se passou no Brasil desde 2013 não se explica sem considerar o interesse dos EUA na região no sentido de controlar essa grande ameaça. Há outra ameaça, ainda: uma busca de autonomia dos países dos Brics (Rússia, China, Índia, Brasil e África do Sul), que demonstraram inclusive intenção em criar um banco mundial alternativo, eventualmente com as transações de petróleo não denominadas em dólar. Como sabemos, o valor do dólar está desde 1971 absolutamente vinculado à família real saudita. Todas as transações de petróleo são feitas em dólar. No momento em que há a ameaça de que isso acabe... Estamos em uma fase de enfrentamento muito forte. E isso é hostil à vivência democrática. Porque, quer de um lado, quer de outro, estamos assistindo a pressões para que vigorem os interesses do capital e não da soberania popular, que constitui o princípio fundamental da democracia.
A luta de EUA e China é por alinhamento: eles querem que seus aliados estejam ao seu lado. Os EUA, particularmente, nessas duas zonas de influência: Europa e América Latina. O Brasil entra nesse jogo de forças. O que se passou no Brasil desde 2013 não se explica sem considerar o interesse dos EUA na região no sentido de controlar a grande ameaça chinesa.
Essa lógica se aplica à Venezuela: os EUA pressionam pela queda de Maduro. Por outro lado, trata-se de um governo autoritário. Maduro constrange a esquerda?
Nessa luta geoestratégica não há santos. E a Venezuela certamente tem os seus demônios, porque realmente conta com dois aliados e mais ninguém: a Rússia e a China. Internamente, houve um processo histórico na Venezuela, que era considerada a Arábia Saudita da América Latina, com grande concentração de riqueza e pouca vivência democrática. Chávez, embora fosse um militar, tentou fazer um governo submetido a eleições. Ele ganhou muitos pleitos, todos chancelados pelo Instituto Carter como livres e justas. Era um líder carismático, que, de certa forma, segurava a coesão social de uma sociedade fraturada. A Venezuela era o único país do continente que não tinha movimentos sociais. Vivia da renda do petróleo, e o Estado distribuindo renda às vezes um pouco em favor dos mais pobres, mas normalmente contra. Chávez, sem alterar o sistema produtivo, fez com que a renda petrolífera fosse redistribuída. Só que, como qualquer líder carismático, não teve sucessor. A consequência é a fraqueza interna. A Venezuela foi quase um laboratório, como o Brasil tem sido neste momento.
Como assim?
Um laboratório de um governo que avançou na distribuição social. Mas são dois laboratórios distintos. A Venezuela avançou muito mais do que o Brasil, sobretudo criando quase uma estrutura de Estado paralelo, as chamadas “Missões”, que eram formas de fazer distribuição social, de serviços e médicos, nos bairros pobres, por não se confiar que o Estado pudesse fazê-lo. Há uma tradição colonial, elitista lá: os médicos não querem trabalhar nas periferias. Houve a necessidade de se fazer uma política alternativa, financiada pela renda do petróleo. O país passou a ser, com Chávez, mais dependente do petróleo do que era antes. Aliás, também aconteceu um pouco com o Brasil e com outros países em que o boom das comodities fez acontecer a desindustrialização. Como sociólogo, gosto de trazer complexidade às coisas e, imediatamente, sou rotulado de defensor da Venezuela. Não é o caso, porque fui muito crítico ao Chávez. Fui solidário com a distribuição social, mas alertei que não se pode criar movimentos sociais de cima para baixo. Ir para a periferia levando dinheiro e esperar que as pessoas se associem para recebê-lo sempre é uma forma perversa de democracia participativa.
(Nos os governos do PT) Perdeu-se uma oportunidade histórica de se fazer uma reforma política e uma reforma das mídias, dois grandes problemas do continente. Houve redistribuição social, mas não houve alteração no padrão de desigualdade interna do Brasil. A riqueza criada, assim, continua a se acumular no topo da pirâmide.
O senhor afirma que Chávez distribuiu mais renda do que Lula e Dilma no Brasil. O senhor chegou a criticar a distribuição de renda dos governos do PT, dizendo que se perdeu uma oportunidade histórica. O que faltou?
Perdeu-se uma oportunidade histórica de se fazer uma reforma política e uma reforma das mídias, dois grandes problemas do continente. Liberdade de imprensa é também prometer que toda a opinião possa ser veiculada, e não apenas a opinião de pequenos grupos políticos. Não é cercear quem já tem opinião: é permitir que haja diversificação. A reforma política, basicamente, seria a limitação do poder do dinheiro nas eleições brasileiras. Isso faria com que o Congresso refletisse melhor as realidades demográficas. E, ao mesmo tempo, imunizaria o poder político em relação ao poder econômico, já que há uma contaminação muito forte. Essa contaminação atingiu o auge depois das eleições do ano passado. Ou seja, chegou-se a uma situação que poderia ter sido evitada. As oportunidades são históricas, isto é, ou se fazia naquele momento, ou ficaria tarde demais. E não se faz. Houve redistribuição social, mas não houve alteração no padrão de desigualdade interna do Brasil. A riqueza criada, assim, continua a se acumular no topo da pirâmide. O ciclo das comodities dura 10 anos, 15 anos. Quando termina, é o caos. A partir de 2010, com a desaceleração da China, começaram as crises. O sistema político tinha de ser robusto o suficiente para que não fosse apropriado pelas elites que, no meu entender, sentiram-se em perigo.
O que mais me dói, agora, é a crítica não só contra a educação e a ciência, mas também o fato de que está havendo um processo de baixar o estatuto de um país semiperiférico para periférico no xadrez internacional. O Brasil poderia ter sido um exemplo para o mundo. E, em uma década, passou a ser o contra-exemplo.
O tempo passou?
Sim, e penso que teria sido diferente se realmente se houvesse aproveitado esse boom das comodities para uma industrialização inovadora com grande investimento tecnológico. O Brasil tem uma capacidade de pesquisa extraordinária. O que mais me dói, agora, é a crítica não só contra a educação e a ciência, mas também o fato de que está havendo um processo de baixar o estatuto de um país semiperiférico para periférico no xadrez internacional. Um país em desenvolvimento intermediário precisa de ciência. Tivemos uma oportunidade histórica de consolidar todo esse movimento ascendente. O Brasil poderia ter sido um exemplo para o mundo. E, em uma década, passou a ser o contra-exemplo. Internacionalmente, está na rua da amargura. Qualquer lugar em que vou fazer palestra me perguntam: “O que houve no Brasil? Como foi possível?”.
O senhor foi visitar o presidente Lula, em Curitiba. Como foi?
Sou amigo dele, mas é bom que se saiba que, quando Fernando Henrique Cardoso era presidente, almocei com ele várias vezes no Planalto. E nunca almocei ou jantei com Lula no Planalto (risos). Mantenho uma distância crítica a Lula. Acho que ele foi o melhor presidente da história brasileira. Mas creio ser necessária uma renovação. Ele é passado. Não se produzirá um novo ciclo nos mesmos termos. Falei para ele, e foi doloroso.
Hoje, minha preocupação é resgatar a credibilidade do sistema judiciário no Brasil. Esse é o grande problema político do Brasil neste momento, no meu entender: resgatar o princípio da legalidade, do Estado de direito, porque realmente a manipulação foi longe demais. E isso é curioso: tanto se falava do estado paralelo do Chávez, mas a Lava-Jato acabou sendo um estado paralelo.
Foi doloroso para Lula?
Sim. Ele está em um prédio da Polícia Federal que ele próprio havia inaugurado, 11 anos antes – tem lá uma placa, até tirei uma fotografia. Quando subi para o segundo andar, fui levado por dois policiais jovens. No caminho, um deles me disse: “Professor, nós devoramos os seus livros”. Respondi: “Se a lição dos meus livros fosse bem entendida, eu talvez não estivesse aqui”. Comecei a brincar um pouco. A prisão é obviamente uma solitária, embora seja uma sala arejada. Conversamos sobre a situação na América Latina. Ele está preocupado.
Como o senhor avalia a condenação de Lula?
Sou jurista, além de sociólogo. Nunca me convenci de que foi uma condenação justa. E os dados que estão saindo (série de reportagens iniciadas pelo site The Intercept) confirmam isso. É isso que dói bastante. Hoje, minha preocupação é resgatar a credibilidade do sistema judiciário no Brasil. Esse é o grande problema político do Brasil neste momento, no meu entender: resgatar o princípio da legalidade, do Estado de direito, porque realmente a manipulação foi longe demais. E isso é curioso: tanto se falava do estado paralelo do Chávez, mas a Lava-Jato acabou sendo um estado paralelo.
Mas, pela primeira vez, se colocou na cadeia os corruptores. O senhor não acha que há valor nisso?
Sim, embora haja várias maneiras de se fazer isso. Acho que poderia ter uma luta contra corrupção atingindo também os corruptores, mas não envolvendo as empresas todas, levando-as à bancarrota. O parque industrial do Brasil foi destruído. Já vi isso em outros lugares: quem fez a reconstrução do Iraque? A Halliburton, empresa norte-americana. Quem vai fazer as grandes obras no Brasil nos próximos anos? Quais são as empresas de construção civil do Brasil que restam? Portanto, é importante lutar contra a corrupção, mas pode haver uma maneira de punição que não elimine completamente do mercado as forças produtivas, porque elas não são só corrupção, elas criaram emprego. Sempre tive impressão, e agora penso que se confirma cada vez mais, que há uma interferência dos EUA no sistema.
A UE está em crise de identidade por conta do Brexit, há o ressurgimento de nacionalismos e a extrema-direita crescendo no parlamento europeu. Para onde a esquerda caminha? Portugal, seu país, é uma exceção na Europa, com um governo socialista.
É, neste momento, a exceção. E Portugal funcionou bem nos últimos quatro anos. Provou que o neoliberalismo não é para promover economia, mas sim um sistema de transferência de riqueza dos pobres para os ricos. Porque Portugal, fazendo o contrário da receita neoliberal, diminuiu o desemprego. Quanto à UE como um todo, chama atenção ter se tornado um alvo dos EUA diante dessa guerra por alinhamento travada com a China. Parece-me clara a estratégia dos EUA de quebrarem a UE. Steve Bannon está ativo na Europa neste momento. Trump é a favor do Brexit e do candidato que quer um Brexit duro (Boris Johnson). Quer desmoralizar a UE. Por uma razão simples: os países europeus individualmente são muito pequenos, não podem competir com os EUA. O único país de quem o governo norte-americano tem medo é a Alemanha – e essa já está sob suspeita: já grampearam Angela Merkel. Mas há outras questões. A esquerda cometeu muitos erros na Europa, sobretudo quando se enamorou pelas políticas neoliberais. Começou a fazer crítica ao Estado, às políticas públicas e sociais, aos sistemas de saúde e educação, abrindo espaço para as parcerias público-privadas, que são uma máquina de transferência de dinheiro para empresários. A esquerda europeia foi perdendo agenda social, que era o que sustentava as socialdemocracias europeias. Isso provocou um vazio, que veio a ser ocupado pela extrema-direita. É curioso. Direita e extrema-direita têm duas versões diferentes: uma neoliberal, a que existe na Hungria e na Polônia, e outra social, mas não democrata, que aproveitou a agenda contra imigrantes. Se você olhar os programas, mesmo dos partidos da extrema-direita de Alemanha e Finlândia, vai ver que eles são adeptos das políticas sociais, só não querem os migrantes se beneficiando delas. Assim criaram o “nós” e o “eles”.
Estamos em uma fase de protecionismo. O que o neoliberalismo fez foi tornar o poder invisível. Os mercados são a lei da natureza. Quando o poder se torna invisível e há desconforto porque há crise social, as vítimas se voltam contra elas próprias. É a política do ressentimento. Está por todo o mundo. Mesmo quem está no poder se faz de vítima. É o que se vê quando Bolsonaro simpatiza ou simplesmente não é hostil a manifestações que questionam as instituições do país que ele dirige, como o Congresso e o STF. Quem ataca a democracia fala que está defendendo a democracia. É por isso que digo: as democracias morrem democraticamente.
Ambas são xenófobas.
Obviamente. Porque estamos em uma fase de protecionismo. O que o neoliberalismo fez foi tornar o poder invisível. Os mercados são a lei da natureza, e a gente, a cada eleição, não vai perguntar o que pensam: vai ver, nas primeiras páginas dos jornais, qual foi a reação dos mercados. Em 1970, em 1980, ninguém ia ver nos jornais as reações dos mercados. Quando o poder se torna invisível e há desconforto porque há crise social, as vítimas se voltam contra elas próprias. A classe média que se sente em perigo na Europa pensa que o seu inimigo é o imigrante refugiado. O operário empobrecido dos EUA pensa que o seu inimigo é o latino. O negro sul-africano empobrecido pensa que seu inimigo é o imigrante moçambicano e zimbabuense. A vítima se volta contra a vítima. É a política do ressentimento. Está por todo o mundo. Mesmo quem está no poder se faz de vítima. É o que se vê quando Bolsonaro simpatiza ou simplesmente não é hostil a manifestações que questionam as instituições do país que ele dirige, como o Congresso e o STF. Quem ataca a democracia fala que está defendendo a democracia. É por isso que digo: as democracias morrem democraticamente.
Essa tese aparece no livro Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. O senhor compartilha da ideia de que líderes autoritários corroem o sistema democrático por dentro?
Sim. As democracias morrem democraticamente. Estamos em sistemas híbridos. É essa anomalia que se vê no Brasil, com a Lava-Jato – que não é democrática; é uma inscrição autoritária no sistema democrático. No sistema híbrido, há elementos ditatoriais e democráticos convivendo de modo inseguro, quase caótico. É o caso das fake news: muitos brasileiros têm como única fonte de informação o WhatsApp e confiam em só duas instituições, nenhuma democrática: família e igreja.
Estamos em sistemas híbridos. É essa anomalia que se vê no Brasil, com a Lava-Jato – que não é democrática; é uma inscrição autoritária no sistema democrático. No sistema híbrido, há elementos ditatoriais e democráticos convivendo de modo inseguro, quase caótico. É o caso das fake news: muitos brasileiros têm como única fonte de informação o WhatsApp e confiam em só duas instituições, nenhuma democrática: família e igreja.
Para onde caminha a esquerda, na sua opinião?
A esquerda tem de voltar às suas origens, aos grupos sociais excluídos, que ela esqueceu há muito tempo. A esquerda deixou de falar com as periferias. Quem fala com as periferias, hoje, são as igrejas evangélicas pentecostais. Hoje, fazer ativismo de esquerda no Brasil é ir a uma reunião de um partido fazer uma análise de conjuntura. Não é viver nas periferias e participar das organizações sociais. Acredito em soluções de radicalização da democracia. A experiência da democracia é que cria oposição a uma lógica da culpa que existe nas periferias, que é promovida pela teologia da prosperidade das igrejas evangélicas. Isso é o fim da sociedade. Para mudar isso, deve haver uma reinvenção da esquerda, inclusive política. Os partidos como existem hoje não são capazes de voltar a falar com as vozes silenciadas das periferias. É preciso criar formas a partir de movimentos. Uma ideia, que vem da Espanha, com o Podemos (partido socialista), é a de que um partido deve ter dentro de si uma democracia participativa. Assim evita corrupção, evita que o líder tenha todo o poder. Aplico aos partidos o que aprendi em Porto Alegre, com o Orçamento Participativo, que constituiu uma articulação virtuosa entre democracia representativa e participativa – que se perdeu com o tempo. Essa articulação segurava as bases, que ficaram à mercê de demagogos e de religiões conservadoras.