A eleição de Jair Bolsonaro representa uma ameaça à democracia? A pergunta traz consigo uma agenda política, e é preciso esclarecer em que sentido ela é séria e relevante para além da histeria das redes sociais e dos interesses da narrativa dos derrotados.
Já se passaram quase duas décadas desde que o capitão da reserva afirmou, em programa televisivo (1999), que o Brasil precisava de alguém que terminasse o serviço dos militares; que era preciso "matar 30 mil", começando por Fernando Henrique Cardoso, então presidente do Brasil. Na mesma entrevista, assumiu ser orgulhoso defensor da tortura, tema recorrente em sua carreira política e que encontrou seu ponto alto na votação do impeachment de Dilma Rousseff, quando dedicou seu voto a Carlos Alberto Ustra, célebre torturador do regime militar. A defesa da ditadura e o ataque continuado às instituições da democracia – Congresso, equilíbrio de poderes, imprensa livre etc. – sempre deram a tônica dos pronunciamentos do irrelevante deputado federal que, em quase três décadas, resumiu sua carreira ao histrionismo ideológico e à caricatura da extrema-direita ressentida. Populista autoritário acima de tudo e antidemocrata e iliberal antes de mais nada, sua biografia comporta tranquilamente entusiasmo com Hugo Chavez, Pinochet e Lula da Silva, em diferentes momentos.
Nada em sua trajetória, enfim, e menos ainda seu histórico de declarações de corte homofóbico, machista e preconceituoso, sugere um chefe de Estado, um democrata. Não reconhecer, portanto, na candidatura vitoriosa os traços todos de um discurso autoritário, antidemocrático e iliberal é um equívoco factual. Quanto a isso, pouca discussão relevante pode haver.
Ocorre que a candidatura de Jair Bolsonaro não foi eleita com base em um programa desse tipo. Antes, a popularidade angariada ao longo de todos esses anos serviu-lhe para vencer uma eleição com base em um programa que, naquilo que se viu publicamente apresentado, defende a Constituição, o cumprimento da lei e a manutenção da ordem, a paz social, a liberdade de escolha na vida pessoal e pública e a proteção para todas as escolhas afetivas privadas; a racionalidade econômica de uma sociedade moderna com um Estado reformado e eficaz; a prosperidade e o desenvolvimento em todas as esferas. Um programa conservador tal como vemos em muitas sociedades perfeitamente democráticas. Esse programa de governo, obviamente, ficou longe de ser debatido e examinado, e sua execução é uma incógnita. Mas foi com ele, e não com chamados ao fuzilamento e à tortura, que Bolsonaro se elegeu. A popularidade do tipo caricato da direita raivosa só fez crescer à medida que as amplas forças sociais do antipetismo concentravam-se em Bolsonaro – era o Capitão, enfim, quem derrotaria o lulopetismo, rechaçado com firmeza por ampla maioria do país. Foi este o vencedor, com esse programa, com 57 milhões de votos no segundo turno de uma eleição democrática que, de anormal, teve efetivamente uma tentativa de assassinato – aliás, a vítima foi Jair Bolsonaro.
Fica assim desenhado, então, o sentido em que é sério e relevante se perguntar sobre a ameaça democrática representada por Jair Bolsonaro: o populista autoritário, antidemocrático e iliberal de quase três décadas governará, agora eleito, com base nos princípios da democracia e da sociedade aberta e plural, tal qual se espera de um líder democrático, ou fará uso do poder político governamental para, oscilando entre a falsa institucionalidade exterior e o pendor tirânico e violento presumido, deturpar nossa democracia?
O jogo de oscilação é possível, e não será inédito: alardear convicção democrática e praticar a arte da corrosão da democracia tem alguns gênios notáveis no Brasil, o maior deles sendo, é claro, Lula da Silva e seus seguidores no PT. Nada garante que Bolsonaro irá por esse caminho, e as dificuldades de um governo fraco, com um líder inexperiente, uma equipe potencialmente conflagrada, uma base medíocre e fortemente corporativa são desafio mais crível do que a "ditadura", a "perseguição" e a "tortura" alardeadas por não insignificantes comentaristas da cena política nacional.
O que me leva ao ponto de partida: há toda uma agenda política por trás do discurso de que "Bolsonaro ameaça a democracia", e essa agenda é frutífera graças a uma combinação muito específica de nosso tempo. De um lado, o PT e suas lideranças políticas (com seus satélites de praxe) conseguiram a proeza de posarem, agora, de defensores da democracia, da liberdade e do pluralismo, quando são, em verdade, a mais consistente força inimiga desses valores – democracia, liberdade e pluralismo, frise-se – na história da política brasileira pós-ditadura; de outro, o emprego usual da máquina de formadores de opinião (imprensa, academia e meio cultural) que, calados diante dos descalabros lulopetistas, falsificam uma realidade de luta indigna para encobrir a venalidade do servilismo aos chefes do bando. Que tudo isso se espalhe sob a constrangedora forma de "resistências" vazias é só a cereja do bolo que importamos da infantilizada esquerda americana, que chorava nas ruas e gritava para os céus, triste e pateticamente, quando da vitória de Donald Trump.