O pastor da Igreja Batista e professor de ciência política Valdemar Figueiredo Filho lembrou das cerimônias de coroação dos monarcas, ao ver Jair Bolsonaro (PSL) aparecer para o discurso de vitória, no último domingo, e imediatamente transferir o protagonismo ao senador Magno Malta (PR-ES), também pastor e também batista. Malta abriu a nova era da política brasileira com uma oração de dois minutos e meio:
— A Tua palavra diz que quem unge a autoridade é Deus. E o Senhor ungiu Jair Bolsonaro.
Valdemar, que passou a ser chamado no meio evangélico de “pastor do demônio” por assumir um tom crítico à mistura de política e religião cozinhada pelo presidente eleito, associou Malta à figura do Papa ou do arcebispo que concedia o poder em nome de Deus.
— Magno Malta reclamou para si, na condição de pastor, a autoridade espiritual, lembrando a quem era devida a coroa antes do Estado moderno. Isso não é do Estado democrático de direito. Isso é medieval. É a unção. Nessa concepção, o que legitima não é o voto, é a vontade de Deus. A Bíblia diz: “Não posso ir contra o ungido do Senhor”. Se Deus quis, pronto, acabou. É um gesto que fere o Estado laico — analisa.
Muitos brasileiros — devotos e não-devotos — ficaram igualmente desconcertados diante de um presidente que, recém-conduzido ao poder pela decisão de 57,8 milhões de eleitores, era apresentado como um enviado do Todo Poderoso. Mal Magno Malta encerrou sua oração, a primeira coisa que ocorreu a Bolsonaro dizer, ao repórter de TV presente, passou a ideia de que ele encarnava o papel sem constrangimentos:
—Com toda a certeza, esta é uma missão de Deus.
Na sequência, começou a ler o discurso que havia preparado. A frase inicial já era uma citação da Bíblia. Dois dias depois, saiu de casa, no Rio, para a primeira aparição pública pós-eleição, e a opção foi por um culto evangélico, comandado pelo pastor e político Silas Malafaia. Na ocasião, Bolsonaro referiu-se a si próprio como “escolhido” do Senhor.
— Ele sinalizou que acredita em Deus e não é ateu como o outro lado. Para o ateu, mentir não é falta de caráter — afirma o deputado Hidekazu Takayama (PSC-PR), atual presidente da Frente Parlamentar Evangélica. Leia aqui a entrevista completa.
A corrida eleitoral já havia tido um indisfarçado caráter messiânico, expresso pela inédita presença da fé no slogan de campanha, que falava em “Deus acima de Todos”. Em comício de 2017, em Campina Grande (PB), Bolsonaro foi ainda mais explícito em seu desafio à separação entre religião e Estado:
—Não tem essa historinha de Estado laico, não. O Estado é cristão, e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm de se curvar para as maiorias.
Bancada da Bíblia avança no congresso
A maioria, no caso, seriam os 79% da população que, conforme pesquisa de 2016 do Datafolha, declaram-se como adeptos do cristianismo. Os que devem se curvar são os outros 21%, um em cada cinco brasileiros, gente que professa diferentes fés, não tem religião ou não crê em divindades.
A Constituição, no entanto, estabelece que o Estado deve ser neutro no campo religioso e não pode “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. É uma tradição que nasce do Iluminismo (no século 18) e se consolida no Brasil com a separação entre Igreja e Estado, operada pela primeira Constituição, em 1891.
— O Legislativo é o espelho da sociedade. Se tem muito cristão aqui, é porque tem muito cristão no país. Mas o Estado não é laico? A administração é laica, mas ela tem de entender que está governando para uma maioria cristã — afirma Takayama.
Especialista no tema, Valdemar acredita que essas conquistas possam ser ameaçadas por Bolsonaro e pastores evangélicos com que chegou ao poder:
—Há um risco à laicidade, que já foi ferida na campanha e naquela oração. Alguém acharia normal um presidente eleito se apresentar com passe de pai-de-santo? É a mesma coisa. Sou pastor e tenho uma igreja, mas acredito no princípio da separação entre Igreja e Estado. Não falo só como cientista político que considera a laicidade boa para o Estado. Falo como crente que acha que ela é boa também para a preservação da Igreja. A fé não pode estar a reboque de um projeto político, seja ele qual for.
Até a Assembleia Constituinte de 1987, os grupos evangélicos mantiveram-se afastados da política, que consideravam coisa do demônio. Temerosos de sofrer prejuízo com a nova Carta, porém, começaram a se mobilizar para colocar representantes no Congresso. Tomaram gosto. Desde então, criaram uma máquina para eleger cada vez mais representantes e implantar uma pauta de defesa dos valores familiares tradicionais —que em grande parte reagia a conquistas de grupos identitários, como feministas e a população LGBT.
Na atual legislatura, a bancada de denominações como Universal, Quadrangular e Assembleia de Deus rondou 80 deputados federais e senadores. Pelos cálculos da Frente Parlamentar Evangélica, esse número subirá a pelo menos 95 a partir de 1º de janeiro, quando assumem os eleitos de 7 de outubro. Pentecostais e neopentecostais também fizeram prefeitos e governadores, mas é agora que atingem o ápice. Com Bolsonaro, estão dentro do Palácio do Planalto —mesmo que o novo presidente se declare católico.