Como um filme repetido, já rodado nas manifestações de junho de 2013, a greve dos caminhoneiros começou com pauta específica, cresceu com o apoio popular, mas a adesão de diversos grupos ao movimento e a inclusão de temas alheios ao debate original transformou a paralisação em uma massa confusa e sem controle.
Líderes de entidades que deflagraram a greve dizem que ela terminou, mas veículos de autônomos seguem parados nas rodovias e dezenas de grupos de extrema-direita se arvoram a pedir intervenção militar, eufemismo para ditadura.
– A mobilização da categoria está encerrada. A pauta de negociação foi cumprida. No domingo, tivemos um dia histórico ao conseguirmos medida provisória para estabelecer o piso mínimo do frete. Isso é um pedido que temos desde 1999. O que restou hoje (da greve) é um movimento político. Se somaram outras pautas que não são as do setor. É a intervenção militar, o Fora Temer, o Lula Livre, a sociedade indignada com o conjunto disso tudo. Isso foi para dentro dos piquetes – diz Carlos Alberto Litti Dahmer, presidente do Sindicato dos Transportadores Autônomos de Cargas de Ijuí.
Embora a descrição do dirigente cite preferências de todas as cores, os defensores da intervenção militar são os mais barulhentos, com palavras de ordem inscritas nos para-brisas dos veículos e bandeiras do Brasil dependuradas.
– Não é mais o caminhoneiro que está fazendo greve. Tem um grupo muito forte de intervencionistas. Vi isso aqui em Brasília. Estão prendendo caminhão em tudo que é lugar. São pessoas que querem derrubar o governo. Não tenho nada a ver com essas pessoas nem os nossos caminhoneiros autônomos têm. Mas estão sendo usados para isso – afirmou nesta segunda-feira (28), em entrevista coletiva, José da Fonseca Lopes, presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), uma das principais entidades deflagradoras da paralisação.
Nos últimos dias, tornaram-se crescentes os relatos da presença, entre os manifestantes, de pessoas que não são caminhoneiros. Caracterizam-se pela capacidade de retórica, geralmente pregando soluções extremistas, e pela incansável atuação para manter alta a temperatura dos protestos.
– É gente bem preparada, profissional de manifestação. Agitam e mobilizam. São conviventes, andam com dois ou três celulares na mão, passam o tempo todo recebendo ligações. Se você começa a perguntar sobre caminhão, sobre estrada, o cara não sabe das coisas. Logo se vê que não é caminhoneiro – diz um motorista autônomo que esteve nos protestos em Araricá, no Vale do Sinos.
PRF investigará ação de infiltrados, diz ministro
O mesmo aconteceu em 2013. A partir de determinado momento, as organizações que lançaram as passeatas pela redução do preço da passagem de ônibus resumiram suas tarefas à marcação de data dos protestos. A pauta, o comportamento e o perfil dos participantes já haviam fugido do controle.
– Conseguimos identificar esse tipo de pessoa (manifestação profissional) aqui na Refinaria Alberto Pasqualini (Refap). Tentamos isolá-los. Temos pautado que essa discussão sobre intervenção militar não cabe. O que estamos fazendo aqui na frente da Refap é parte da democracia – diz Fernando Maia da Costa, presidente do Sindicato dos Petroleiros no Estado (Sindipetro-RS).
O ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, afirmou nesta segunda-feira (28) que Polícia Rodoviária Federal (PRF) vai investigar e separar possíveis infiltrados políticos nas manifestações, denunciados por líderes de entidades de caminhoneiros. Setores da direita estão rachados. Enquanto os extremistas e ultranacionalistas se apegam à intervenção, os identificados com o liberalismo se mostram preocupados.
– O Exército está aí para preservar a lei e a ordem. Quando está tudo em desordem, normalmente os militares são chamados a intervir, como aconteceu na segurança do Rio. É uma questão cultural brasileira que leva as pessoas a entenderem que só o Exército pode resolver. Mas estamos em ano eleitoral. Esse é o fato. Na verdade, o que precisamos é de melhores candidatos e de melhores eleitores para resolvermos isso pela via democrática – avalia o ex-deputado estadual Marcel van Hattem (Novo), ligado ao Movimento Brasil Livre (MBL).
Tanto Dahmer quanto Maia da Costa descrevem o caminhoneiro autônomo como “apartidário”. De outro lado, empresários do setor construíram aproximação com o deputado federal e presidenciável Jair Bolsonaro (PSL-RJ), declarado defensor da ditadura. Em junho de 2017, ele foi o principal convidado a palestrar na 19ª Feira e Congresso de Transporte e Logística (Transposul), em Porto Alegre, evento organizado pelo Sindicato das Empresas de Transporte de Cargas e Logística no Estado (Setcergs), agora alvo de investigação por locaute. Naquela ocasião, Cláudio Antonio Cavol, presidente do Sindicato do Transporte de Cargas do Mato Grosso do Sul (Setlog-MS), afirmou que a categoria apoiava Bolsonaro e prometeu adesivar caminhões Brasil afora. Ainda assim, é uma afinidade na seara da democracia, já que o capitão da reserva é pré-candidato à Presidência, o que contraria as incitações de novo golpe militar.
Contradições ideológicas na disputa por protagonismo
A esquerda, que sempre esteve na dianteira de greves e protestos, agora observa atônita. Além de não ter protagonismo, guarda dúvidas sobre como se posicionar. Entre ações e consequências, surgem contradições. Como, por exemplo, apoiar a greve dos caminhoneiros no momento em que a mobilização pende ao autoritarismo de extrema-direita.
– Isso acontece muito pela instabilidade de um governo que ninguém quer. Todas as greves têm contradições. O que estamos tentando fazer agora é, em primeiro lugar, ajudar os caminhoneiros. Em segundo, politizar a greve. Acrescentar outros setores e organizar greve geral. O objetivo é derrubar esse governo. E chamar eleições. O povo que escolha – diz Érico Correa, da central sindical CSP-Conlutas.
Os petroleiros, em grande parte ligados à Central Única dos Trabalhadores (CUT), de histórico de afinidade com o PT, farão três dias de paralisação a partir desta quarta-feira. No total, funcionários de 13 bases afiliadas à Federação Única dos Petroleiros irão cruzar os braços.
– Entendemos que, independentemente da formulação política, a luta dos caminhoneiros é fundamental para a população. Não adianta só negociar desconto no diesel. A gasolina vai continuar cara por conta da política de preços atual da Petrobras, executada pelo Pedro Parente (presidente da estatal) para atender aos interesses dos acionistas e não aos da população – avalia Maia da Costa.
O cenário de confusão na disputa política que se apoderou das manifestações é tal que pode acabar reunindo em frente à Refap, principal unidade da Petrobras no Rio Grande do Sul, integrantes da CUT e grupos ultranacionalistas.