Por Paulo Fagundes Visentini
Professor titular de Relações Internacionais da UFRGS
Recentemente o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) foi ressuscitado de forma sensacionalista. Quando ingressei na UFRGS, em 1976, as manifestações estudantis se reiniciavam e viam o governo de forma muito negativa. Havia esperança e medo: opositores assassinados, desigualdade social e sinistros informantes. Vinte anos depois, em pesquisa sobre a política externa do regime militar, a percepção se tornou mais complexa.
Seu governo pode ser considerado o apogeu da industrialização e da diplomacia autônoma, apesar das mazelas político-econômicas, e projetou a abertura política. Geisel integrava a geração tenentista, crítica à República Velha e sua corrupção e atraso. Queriam o desenvolvimento do país e, como tal, participou da Revolução de 1930, intitulando-se um "revolucionário" em seu livro-entrevista. Militar de carreira brilhante (e homem culto e inteligente), também participou do golpe que derrubou a desgovernada presidência de João Goulart. Ele integrava o grupo "castelista" (de Castelo Branco), que desejava uma intervenção limitada, para forjar novas instituições e sair do poder. Mas, apesar da Constituição de 1967 configurar tal realidade, a sucessão levou ao poder o general Costa e Silva, da chamada "linha dura" (queriam uma intervenção longa).
As manifestações de 1968 reforçaram os elementos dessa ala (que tinha muitos "falcões" civis), e veio o AI-5, a doença e a morte do presidente e a Junta Militar (que realizou expurgos entre os militares). As Forças Armadas se mostraram divididas e necessitavam de um presidente aceito por todos, abrindo caminho ao governo Médici (1969-1974), que Geisel considerava "boa pessoa, mas sem grandes luzes". Durante esse período, o aparato repressivo foi ampliado e diversificado e ganhou grande autonomia, pois o presidente não era centralizador, e havia luta armada urbana e no Araguaia. No governo anterior, Geisel esteve afastado das decisões, no Tribunal de Contas, e no de Médici, dirigiu a Petrobrás.
Foi indicado para a sucessão justo quando eclodiu a crise do petróleo, que atingiu o "milagre" em cheio. Ao assumir, em março de 1974, tinha de contar com o apoio das Forças Armadas para seu projeto arrojado, mas, ao mesmo tempo, conter os adversários da "linha dura", que exageravam a "subversão" armada (já derrotada) para se afirmar. Logo estavam aglutinados em torno do general Sylvio Frota, Ministro do Exército, sempre tentando colocar seus aliados em posições-chave.
Tanto por personalidade como por necessidade de governo, foi muito centralizador e, por isso, logo no início do mandato, reuniu seus ministros e disse que as grandes decisões deveriam passar por ele. Naquele momento, os Estados Unidos estavam muito contrariados com os projetos do novo governo, o que torna o documento americano tarjado (já desclassificado em 2015) extremamente tendencioso. Geisel foi obrigado a enfrentar os bolsões autônomos da repressão, inclusive demitindo o comandante do Exército em São Paulo após o segundo "enforcamento" de preso político e, mais tarde, demitiu o próprio Frota, acabando com as pretensões da "linha dura".
Ao mesmo tempo, tinha de administrar a oposição popular com medidas como o fechamento do Congresso, os "senadores biônicos" e a repressão para moderar o ritmo do processo de abertura. Na economia, em lugar do receituário monetarista e recessivo, decidiu aprofundar a industrialização por substituição de importações e o desenvolvimento científico-tecnológico, áreas nas quais promoveu maciços investimentos. Mas, para isso, eram necessários recursos, o que poderia ser obtido com uma política externa arrojada, o Pragmatismo Responsável. Geisel e seu chanceler Azeredo da Silveira quebraram a obtusa e ideológica diplomacia de Guerra Fria, reatando com a China, aproximando-se dos países árabes, da Alemanha (Projeto Nuclear) e do Japão, além de uma política africana enfática (reconheceu o marxista MPLA em Angola), a qual trouxe expressivos resultados econômicos.
Obviamente que tudo isso atraiu a oposição americana e da imprensa mundial e nacional, que aumentaram as críticas a um governo no qual a violação dos direitos humanos foi menor, na comparação com o anterior. Como o professor que divulgou o documento mencionado escreveu em livro publicado neste ano, havia "o projeto político do presidente Geisel de liberalização do regime autoritário". Então, quem é mais contraditório, Geisel ou seus críticos?