O julgamento que prevê a restrição do foro privilegiado a autoridades, conduzido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), deverá ter repercussão pequena. Caso a tese em discussão na Corte seja mantida, a condição atingiria somente deputados federais e senadores. O índice de cargos afetados seria de pouco mais de 1% entre todas as pessoas com direito a processo em instâncias superiores. Ao todo, o Brasil tem quase 55 mil cargos públicos com garantia constitucional de foro por prerrogativa de função, número imponente frente ao de parlamentares que integram o Congresso, que chega a apenas 594. Os dados integram levantamento da Consultoria Legislativa do Senado.
— Não fizemos juízo de valor. Nossa intenção foi subsidiar o debate. Mas o número nos surpreendeu — relata o consultor legislativo do Senado João Trindade Cavalcante Filho, um dos responsáveis pela pesquisa.
Para o relator do tema no STF, ministro Luís Roberto Barroso, deputados e senadores deverão ser julgados pela Corte somente se cometerem crimes durante o mandato e em decorrência dele. Inquéritos referentes a casos anteriores à posse ou a crimes comuns, como corrupção, a qualquer tempo seriam conduzidos pelas instâncias iniciais da Justiça estadual.
O magistrado afirmou que não incluiu outros cargos — como ministros de governo, deputados estaduais, juízes e membros do Ministério do Público — porque o debate começou a partir de uma questão de ordem referente ao caso do prefeito de Cabo Frio (RJ), Marquinho Mendes (PMDB), processado por compra de votos na eleição de 2008. Mas, por ter assumido o município e, posteriormente, mandato de deputado federal, o processo mudou de foro três vezes e ainda não foi concluído.
Ainda assim, no plenário do STF, o ministro salientou que, se prevalecer sua compreensão sobre o assunto, casos semelhantes, mas que envolvam outras esferas do poder público, poderão ter a mesma interpretação.
— Muito provavelmente, se chegar outra questão, aplicaremos a mesma lógica, mas, por ora, discutimos essa situação específica — explicou Barroso.
A análise do tema foi interrompida na última quinta-feira, com o placar de oito a zero pela mudança na regra, por pedido de vista do ministro Dias Toffoli, que discorda dos argumentos de Barroso. Apesar de o resultado estar encaminhado, a conclusão só ocorrerá quando todos os magistrados divulgarem seus votos, o que não tem previsão para ocorrer. Atualmente, há 528 processos criminais no STF, entre inquéritos e ações penais, referentes a parlamentares. A estimativa é de que 90% deles poderiam ser encaminhados a instâncias inferiores a partir da possível mudança na regra.
Ainda durante a sessão, Barroso disse que mudanças mais abrangentes relativas ao foro dependem de emenda constitucional e, por isso, são de responsabilidade do Congresso. O recado foi endereçado à Câmara, onde tramita proposta sobre o tema prevendo restrição da prerrogativa apenas aos presidentes da República (e seu vice), da Câmara, do Senado e do STF, ainda sem data para ser votada.
Juristas concordam que a melhor solução seria mudar a Constituição e não reinterpretá-la. Mas a morosidade de deputados e senadores faz com que o Supremo tenha de se posicionar, avaliam. O ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp é favorável que o STF construa posição conclusiva sobre o foro, deixando claro quais serão os cargos atingidos pela mudança na interpretação, sob pena de tornar a decisão questionável juridicamente. Apesar de concordar com restrições à prerrogativa, critica a possibilidade de mudanças apenas aos integrantes do Congresso.
— Se o STF limitar isso apenas para a Câmara e para o Senado, vai parecer que é uma decisão casuística para aliviar o número de processos do Supremo Tribunal Federal — diz Dipp, defendendo a ampliação da medida de forma geral, com exceção de presidentes dos Poderes.
Para o professor de Direito Constitucional da Fundação Getulio Vargas (FGV) Rubens Glezer, a saída encontrada pelo STF sobre o caso não é uma "boa solução": o melhor caminho seria unir a proteção do mandato contra perseguições políticas ao combate a crimes cometidos em atividades ligadas diretamente aos cargos.—
— A solução proposta por Barroso, que tem sua equivalente no Congresso, não equaciona bem isso porque a distinção entre crimes com adesão funcional ou não continua deixando o mandato vulnerável a eventuais perseguições no Brasil — analisa Glezer.
O professor da FGV avalia que o fim da possibilidade de deputados e senadores responderem por crimes em instâncias superiores pode servir de "balão de ensaio" para a ampliação do debate sobre o tema e até incentivar mudanças mais profundas na Constituição.
A restrição que pode ser imposta pelo STF é um gesto simbólico para o doutor em Direito Constitucional e professor da Unisinos Anderson Teixeira, que defende a ampliação da discussão. Para ele, a revisão não deve atingir o Judiciário e membros do Ministério Público sob risco de se"institucionalizar a perseguição política".
No Congresso
-A proposta de emenda à Constituição que restringe o foro privilegiado a apenas cinco cargos no Brasil, dos atuais 54.990, foi aprovada em dois turnos no Senado. O texto chegou em junho à Câmara, mas ficou parado devido aos debates das duas denúncias contra o presidente Michel Temer.
-Na última semana, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou o parecer do deputado Efraim Filho (DEM-PB), que orientou a aceitação do texto na Casa. A partir de agora, o tema será discutido por uma comissão especial, que terá cerca de três meses para elaborar parecer sobre o mérito da questão.
-O grupo ainda não foi criado e não há previsão para que isso ocorra. A votação no plenário da Câmara, onde são necessários 308 votos em dois turnos para aprovação, também não tem data.
No Supremo
-O julgamento prevê que deputados federais e senadores serão julgados no STF somente se cometerem crimes durante o mandato e em decorrência dele. Inquéritos referentes a casos anteriores à posse ou a crimes comuns a qualquer tempo seriam conduzidos pelas instâncias iniciais da Justiça estadual.
-Esses parlamentares representam pouco mais de 1% do total de pessoas cobertas por algum tipo de foro por prerrogativa de função no país, estimadas em 55 mil.
-A mudança pode levar 90% dos processos penais no Supremo para outras instâncias e causar impacto direto nos inquéritos da Lava-Jato, já que os crimes investigados não teriam relação direta com os mandatos legislativos.
Quem tem direito
A Constituição prevê foro privilegiado a 38.431 cargos públicos:
-Presidente e vice da República, procurador-geral da República, senadores, deputados federais e estaduais, ministros de Estado, governadores e prefeitos
-Comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica
-Ministros de tribunais superiores
-Juízes de direito, de tribunais de 2ª instância e membros do Ministério Público e de Tribunais de Contas
As constituições estaduais asseguram o foro privilegiado a 16.559 cargos públicos — no RS, são 513 pessoas:
-497 são prefeitos, já garantidos pela Constituição federal
-Vice-governador, secretário, procurador-geral do Estado e defensor público geral
-Há Estados que garantem foro privilegiado a todos os vereadores, o que faz o número disparar. Juntos, a Bahia, o Rio de Janeiro e o Piauí têm 10.847 cargos com essa prerrogativa, mais do que o dobro das somas de todos os outros Estados. (Fonte: Consultoria Legislativa do Senado)