A discussão sobre o fim do foro privilegiado a autoridades será retomada em duas frentes nesta semana, em Brasília. Na Câmara, uma proposta de emenda à Constituição (PEC) já aprovada no Senado, que mantém a prerrogativa apenas para os chefes dos três poderes, voltará a ser debatida após seis meses parada. No Supremo Tribunal Federal (STF), será retomado o julgamento de uma ação penal que poderá alterar o entendimento sobre o tema.
Atualmente, a regra beneficia servidores que ocupam quase 55 mil cargos públicos, de acordo com projeção da consultoria legislativa do Senado. Se o entendimento for revisto, os crimes comuns – como casos de corrupção e, entre eles, de réus da Operação Lava-Jato – seriam investigados pela primeira instância da Justiça e não mais por tribunais superiores. A exceção ficaria com presidentes (e seu vice) da República, da Câmara, do Senado e do STF. Os crimes de responsabilidade, cometidos em decorrência do mandato ou do exercício da função pública, deverão manter o status diferenciado.
No Legislativo, sessão extraordinária da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) foi convocada para quarta-feira. O parecer do deputado Efraim Filho (DEM-PB), favorável à tramitação do texto, será votado. Se for aprovado, a matéria ainda precisará ser debatida em comissão especial, que tem até três meses para concluir o debate e então enviar a PEC ao plenário.
– Nossa proposta é mais ampla do que a do STF. Também alcança membros do Judiciário, Ministério Público, Executivo – comenta Efraim.
Um dia depois da Câmara, o STF vai retomar o assunto, mas em outra discussão. Na Corte, o tema entrou na pauta a partir do julgamento de uma ação penal por compra de votos. O réu é o atual prefeito de Cabo Frio (RJ), Marcos da Rocha Mendes (PMDB). Ele chegou a assumir a cadeira na Câmara no lugar do deputado cassado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), mas renunciou para assumir a prefeitura. Em razão dessas alterações de funções, o caso mudou de foro diversas vezes.
A partir disso, a Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu maior rigor na interpretação da Constituição em referência a quem teria direito a foro por prerrogativa de função. O julgamento foi suspenso em junho, após pedido de vista de Alexandre de Moraes. O placar estava em quatro a zero pela restrição da prerrogativa aos políticos.
Para o relator do caso, ministro Luís Roberto Barroso, apenas os crimes cometidos durante a permanência no cargo e em decorrência dele deveriam ser tratados de forma diversa. “Há problemas associados à morosidade, à impunidade e à impropriedade de uma Suprema Corte ocupar-se como primeira instância de centenas de processos criminais”, destaca o ministro.
Estrutura limitada, dizem especialistas
O fim do foro privilegiado para ocupantes de funções públicas é defendida por juristas. Os motivos vão desde o maior “senso de Justiça” até questões estruturais das cortes superiores. Para o desembargador do Tribunal de Justiça gaúcho e doutor em Direito do Estado Jayme Weingartner, a extinção da prerrogativa de foro por função poderá ser benéfica para acabar com a percepção entre a sociedade de que há “duas velocidades” nas decisões do Judiciário envolvendo cidadãos comuns e autoridades:
– A percepção de que não se atinge o “andar de cima” pelas dificuldades estruturais e gargalos é muito difícil para a democracia e para a República que pressupõe a igualdade entre todos os cidadãos.
Segundo Weingartner, a quantidade de processos de detentores de foro especial que chega ao STF acaba gerando entraves para o sistema de justiça criminal, principalmente pela falta de estrutura que os tribunais superiores têm para investigar casos comuns. O pesquisador e professor de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) Ivar Hartmann defende o fim do foro privilegiado e também destaca as limitações que o modelo atual impõe aos tribunais.
– Essas cortes não estão configuradas para julgar processos penais em primeira instância. Não foram pensadas para avaliar provas, e, sim, teses – defende o especialista.
Mas Hartmann afirma que não há garantia de que a mudança na Constituição traga celeridade aos processos, já que não há estudos referentes às instâncias iniciais da Justiça.