Por Jorge Barcellos
Doutor em Educação
O lançamento de Flavio Koutzii – Biografia de um Militante Revolucionário (de 1943 a 1984), do historiador Benito Bisso Schmidt, vem a público no momento em que discute-se o desafio de reorganizar a resistência frente aos retrocessos dos direitos sociais. Enquanto alguns afirmam a necessidade de voltar ao trabalho de base e a mobilizações a partir das periferias, para mim o desafio é conectar a memória da esquerda ao debate de projeto de futuro, para, com isso, reencontrar-se com a energia utópica de sua fundação.
Por isso, a obra de Schmidt tem importância estratégica na luta política atual: é uma arma a mais para a reorganização da esquerda frente ao golpe perpetrado contra a presidenta eleita Dilma Rousseff e a onda conservadora que toma conta do país.
A razão é que Koutzii foi o exemplo mais notável de militante político de esquerda que se viu na capital gaúcha. Nascido em Porto Alegre em 1943, foi peça fundamental "na formulação e implementação dos projetos de alguns setores de esquerda latino-americana entre os anos 60 do século XX e as primeiras duas décadas do século XXI", aponta Schmidt logo na introdução. Vereador, deputado estadual e secretário de Estado, abandonou a política em 2006, sem nunca deixar de ser, como Olívio Dutra, a eminência parda do PT.
Schmidt aproximou-se de Koutzii a partir de 2003, em um projeto sobre a história do PT no Rio Grande do Sul. Ali teve a ideia do projeto da biografia que só começaria em 2008 e que levou quase 10 anos para ser concluída. O autor fez uma exaustiva pesquisa do homem, de suas motivações políticas, dúvidas e inquietações, numa obra que coloca-se ao lado de outras biografias célebres de personalidades de esquerda da política brasileira, como Jango, de Jorge Ferreira (Civilização Brasileira, 2011).
A obra é organizada em cinco capítulos. O primeiro trata das vivências familiares do biografado, a influência do pai, Jacob, a identidade judaica e a infância no Colégio de Aplicação, além de apontar as vivências que contribuíram para Koutzii transformar-se no militante revolucionário. O capítulo segundo mostra a ascensão de Koutzii no movimento estudantil da Capital, sua adesão ao PCB, os efeitos do golpe de 1964 em sua trajetória, sua expulsão do partidão, seu ingresso na Dissidência Leninista do RS e o POC e a clandestinidade.
O capítulo terceiro se inicia com sua saída do Brasil "motivada tanto pela repressão policial quanto pela atração oferecida pela perspectiva internacionalista da Quarta Internacional", como salienta Schimdt. Koutzii vai do Chile à França e, após, volta a América Latina, fixando-se na Argentina. Ali, como militante da PRT-ERP, a mais importante organização marxista argentina, integrou sua dissidência, a Fracción Roja, que atuou entre 1966 e 1976.
Para Schmidt, o capítulo mais difícil de escrever foi o quarto. Nele está a prisão de Koutzii, em 1975, e toda a violência que o fez vítima da ditadura argentina e sua passagem por diversas prisões, além da campanha por sua libertação. Como pesquisador, Schmidt via-se às voltas com a questão: é possível narrar o horror? Era preciso fazê-lo para narrar as situações limites vividas, para reconhecer um período histórico em que o horror foi prática oficial e sistemática de governo. No plano de fundo, uma questão atual: o que acontece quando vivemos um estado de exceção?
O capítulo cinco, que encerra a obra, trata do exílio de Koutzii na França. Para o biografado, e para tantos outros, o exílio representou a estratégia de sobrevivência, e a pesquisa acadêmica, a estratégia psíquica para elaborar individualmente sobre a dor – "O exílio vem depois do medo e do início da culpa", afirma Koutzii.
A experiência da luta armada e repressão política, como se sabe, é traço fundamental na história da esquerda no Brasil. Schmidt constrói uma narrativa evitando o erro da ilusão biográfica e consegue escapar da ilusão retórica porque faz uma pesquisa minuciosa. Vêm a público parte do acervo pessoal do biografado, correspondências trocadas entre amigos e políticos, cartas de militantes políticos brasileiros, notícias de periódicos como Coojornal, Folha da Tarde e Movimento e o conteúdo de 47 entrevistas, fora a pesquisa no acervo de São Paulo, Rio de Janeiro e Arquivo Nacional (Brasília).
Fica evidente, ao longo da obra, que não existirá resistência de esquerda sem a incorporação do legado do passado, cuja grande lição é colocar os sonhos e as esperanças em primeiro lugar. Daí a necessidade de conhecer em profundidade a memória de Koutzii, tarefa urgente para a esquerda atual repensar o seu presente.
O LIVRO
Flavio Koutzii – Biografia de um Militante Revolucionário (de 1943 a 1984)
De Benito Bisso Schmidt.
Editora Libretos, 540 páginas, R$ 49,90.
Lançamento, com sessão de autógrafos com as presenças do autor e do biografado, nesta terça-feira (14/11), às 18h30min, na Feira do Livro de Porto Alegre.