"Quando a tristeza é grande demais", disse o elfo, "o tempo sempre paralisa tudo à nossa volta." A frase do personagem fantástico Clavim, de A Pequena Chave Dourada, que terá sessão de autógrafos nesta terça-feira (14), às 14h30min, na 63ª Feira do Livro de Porto Alegre, é inspirada em uma fala da coautora do livro, Emilia Soares, oito anos, quando enfrentava a fase mais difícil de seus desafiadores primeiros anos de vida.
Em muitos dos trajetos realizados a pé entre sua casa, no bairro Padre Reus, em São Leopoldo, e o Colégio Sinodal, ela e o pai, o ilustrador João Soares, 52 anos, não conseguiam encontrar um assunto que pudesse entretê-los naquela aridez em que uma doença gravíssima os aprisionara – a dona de casa Ana Soares, 47 anos, mulher de João e mãe da menina, padecia de um câncer incurável e já estava muito debilitada. Os dois andavam em silêncio.
— Quando a gente tá triste, parece que tudo para — definiu Emilia, então com seis anos de idade.
O quadro de saúde de Ana não melhorou – "O dodói é muito dolorido?", perguntava a pequena –, mas, depois de muitos dias calados, João e Emilia passaram a habitar um universo paralelo durante as caminhadas diárias, preenchendo os percursos com histórias inventadas.
— Tá vendo ali? Ali tem um elfo! — apontou o pai certa vez.
E então a dupla se encheu de assunto. Um dia de chuva não era um transtorno, mas, sim, cenário para uma nova aventura: o guarda-chuva se transformava na carruagem da princesa Emilia, que precisava chegar logo ao seu castelo, representado pela escola. Ambos criavam canções, batiam palmas.
— A ida para o colégio virou a hora mais feliz do dia, tinha muita vida. Minha filha voltou a sorrir — recorda João.
Ana teve o diagnóstico de um tumor de mama em 2011. Com o tempo, surgiram metástases. Depois de perder o movimento das pernas, a paciente necessitava de auxílio para tudo: alimentação, higiene, curativos. João assumiu os cuidados com a mulher e os três filhos, além das demandas domésticas. Bens tiveram de ser vendidos para custear a nova realidade da família.
— O câncer não deteriora só um ente querido. Ele acaba com você psicologicamente, financeiramente. Eu me sentia tão impotente, tão inútil diante de uma doença tão cruel. Todos nós ficamos doentes aqui em casa — descreve o ilustrador.
Ao retornar da escola, João passou a tomar nota dos enredos que surgiam nas divagações com a caçula. Mostrava as anotações para a mulher, que incentivava:
— Vocês têm que escrever um livro!
A Pequena Chave Dourada apresenta a história de Tio Antônio, um idoso viúvo que morava em um asilo, corroído pela saudade que sentia da companheira e da época em que seus filhos eram crianças. Um episódio inusitado aconteceu enquanto ele repousava em sua cadeira de balanço no jardim – Tio Antônio conheceu o elfo Clavim, pequenina criatura de barba longa que usava um grande chapéu e carregava um molho de chaves, detalhe este que impulsiona a história daí para a frente.
Ana morreu no início de maio de 2016, às vésperas do Dia das Mães. Na tentativa de descrever o que sentiu naquele momento, o viúvo diz ter perdido o oxigênio. Sem conseguir encontrar as palavras adequadas para comunicar Emilia, ele lhe deu a notícia apenas com o olhar. Choraram.
— Ela virou uma estrela — explicou João em seguida, levando a filha até o pátio para observar o céu.
Dois meses depois, Emilia provocou o pai, usando uma frase que ouvira da mãe:
— Não tá na hora de a gente realizar esse sonho?
João reuniu seus rascunhos e começou a organizar o livro, procurando editoras interessadas. O texto e as ilustrações são do pai com palpites da filha, que ao longo do processo sugeriu frases, detalhes, desfechos. Os outros dois filhos, Joana, 19 anos, e João, 17, contribuíram, respectivamente, com a revisão e a criação da capa. Com tiragem de 500 exemplares, a primeira edição já circula pelas mãos de alunos em salas de aula. Um segundo título está em elaboração. O autor deseja que seu livro aproxime pais e filhos em leituras na hora de dormir.
— Eu não nos considero escritores. O sofrimento fez a gente desabafar — explica João, enquanto Emilia, tímida durante a visita da reportagem, brinca no chão da cozinha, utilizando um estetoscópio e uma seringa de brinquedo para examinar e tratar uma boneca que leva o mesmo nome da mãe.
SERVIÇO
A Pequena Chave Dourada, de Emilia e João Soares (sob os pseudônimos de Emily e Johnny)
Editora da Ulbra, 16 páginas, R$ 20
Sessão de autógrafos nesta terça-feira (14), às 14h30min, na Praça de Autógrafos da 63ª Feira do Livro de Porto
Vendas pelo site apequenachavedourada.lojavirtualnuvem.com.br e também na Feira
TRECHO
"O susto inicial foi passando, e Tio Antônio percebeu que havia algo familiar naquele anãozinho.
– O que é você? E por que carrega esse molho de chaves?
– Sou um elfo. Sobre as chaves, levante dessa cadeira que eu vou lhe mostrar.
Com um pouco de esforço, Tio Antônio levantou-se. Assim que se levantou, ficou mais surpreendido ainda, pois tudo à sua volta estava parado: viu pessoas imóveis como estátuas, um passarinho congelado em pleno voo, e que folhas caídas das árvores não atingiam o chão.
– O que está acontecendo, Clavim?
O pequeno elfo olhou em seus olhos e respondeu, de forma pausada:
– A tristeza que você sente é grande demais... Quando a tristeza é grande demais, o tempo sempre paralisa tudo à nossa volta."