Para o juiz Sergio Moro, seria "lamentável" se os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) revissem o entendimento da Corte que autorizou prisão de condenados em segunda instância. Questionado sobre decisões recentes de Gilmar Mendes, Moro disse que espera que o ministro "mantenha o precedente" que "ajudou a construir".
Na última quarta-feira (23), pela primeira vez desde o início da Operação Lava-Jato, o juiz federal ordenou a prisão de dois condenados que tiveram recursos negados no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) – corte de apelação que pode revisar ou confirmar suas sentenças.
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Um dia antes, Gilmar Mendes concedeu habeas corpus para soltar um condenado em segunda instância que estava no regime semiaberto. Em outubro do ano passado, o ministro votou a favor da possibilidade de execução da pena após a sentença de segundo grau. Mendes, porém, é a favor da rediscussão do tema, defendendo que a execução aguarde julgamento de recurso pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Outros ministros do STF já admitiram a possibilidade de o plenário rever o entendimento sobre o assunto. Leia a entrevista concedida por Moro ao jornal O Estado de S. Paulo por e-mail:
O senhor mandou prender condenados da Lava-Jato com base em ordem do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). Foi a primeira vez que isso ocorreu. O que isso significa na guerra da Lava-Jato?
A Lava-Jato não é uma guerra, mas, assim como outros processos anteriores, como a Ação Penal 470 (o caso do mensalão no Supremo Tribunal Federal), representa uma exceção à impunidade de crimes de poderosos. Foi o próprio TRF4 quem ordenou as prisões após a confirmação de condenação por crimes de lavagem de cerca de R$ 18 milhões, tendo por antecedente corrupção. Apenas segui uma ordem, embora com ela concorde integralmente. Significa, na prática, que talvez – e eu dou ênfase ao talvez – a era da impunidade dos barões da corrupção esteja chegando ao fim.
Em sua decisão, o senhor fala dos "processos sem fim". Como dar um fim nisso?
O processo funciona quando o inocente vai para casa e o culpado vai para a prisão, principalmente em crimes graves como homicídio e corrupção. Se isso não ocorre, é uma farsa. A lei processual penal brasileira é muito generosa com recursos. Advogados habilidosos de criminosos poderosos podem explorar as brechas do sistema legal e apresentar recursos sem fim. O remédio é fácil, diminuir as brechas do sistema e os incentivos a recursos protelatórios. Uma forma é permitir a execução imediata de uma condenação por uma corte de apelação, que é a lei vigente, e admitir a suspensão dessa execução somente em casos excepcionais, quando for apresentado um recurso a um tribunal superior que tenha reais chances de êxito.
A quem o senhor atribui o quadro de "impunidade de sérias condutas criminais"?
O Brasil é uma sociedade profundamente desigual e o nosso sistema processual penal reproduz essas desigualdades, criando privilégios que impedem a efetiva responsabilização de pessoas poderosas por seus crimes. Não é só corrupção, mas até mesmo crimes de sangue, desde que praticados por pessoas poderosas. Em uma democracia liberal, todos devem ser tratados como livres e iguais, até mesmo quanto à sua efetiva responsabilização após cometerem um crime.
As prisões têm amparo na decisão do STF sobre execução de pena a partir do julgamento de segundo grau. A Corte pode mudar o entendimento. O senhor está preocupado?
A presunção de inocência é um escudo contra uma punição indevida. Exige que uma condenação criminal seja baseada em prova categórica. Na França e nos Estados Unidos, após o julgamento em primeira instância, já se inicia a execução da pena, com prisão, como regra. Então, executar a condenação, no Brasil, após a decisão da corte de apelação não fere a presunção de inocência. O STF adotou esse entendimento em 2016 a partir de um julgamento conduzido pelo ministro Teori Zavascki. Fechou uma grande janela de impunidade e, embora o trabalho do ministro tenha sido notável em outras áreas, penso que foi esse o seu grande legado. Representou uma mudança geral no sentido do fim da impunidade dos poderosos e na construção de um governo de leis no Brasil. Reputo prematura a afirmação de que o Supremo vai reverter o precedente do ministro Teori. Enquanto não houver decisão, ministros podem mudar sua posição e há grandes ministros no Supremo, como, para ficar somente em dois exemplos, o ministro Celso de Mello e a ministra Rosa Weber, que têm demonstrado preocupação com o nível de corrupção descoberto. Com todo o respeito ao Supremo, seria, no entanto, lamentável se isso ocorresse.
Ao mesmo tempo em que o senhor manda prender, o ministro Gilmar Mendes manda soltar. O que deve prevalecer?
Não penso que as questões devam ser tratadas a nível pessoal, mas institucional. Respeito o ministro Gilmar Mendes e espero que, ao final, ele, pensando na construção da rule of law (império da lei), mantenha o precedente (a possibilidade de execução da pena após decisão em segunda instância) que ele mesmo ajudou a construir.
O senhor se frustra com isso?
Revisões de decisões judiciais fazem parte do horizonte da profissão. Evidentemente, nenhum juiz gosta de se sentir como se estivesse vivendo o mito de Sísifo (mais informações abaixo).
Os advogados alegam que prisões em segundo grau violam o pleno direito de defesa.
A proteção contra a punição indevida consiste em admitir a suspensão da execução da condenação caso apresentado um recurso plausível a uma corte superior. Compreendo que parte da advocacia criminal queira proteger ao máximo os seus clientes, mas o processo penal não serve apenas à proteção do acusado, mas também à proteção da vítima e de toda a sociedade. Tem de se pensar além dos próprios interesses corporativos.
Trabalho inútil
O mito grego de Sísifo, citado pelo juiz federal Sergio Moro na entrevista, narra a história de um homem condenado a carregar uma pedra até o topo de uma montanha. Toda vez em que ele está para cumprir sua tarefa, a pedra rola montanha abaixo. A metáfora é de que não há punição mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança.