Nas últimas cinco décadas, a falência do Estado tem monopolizado as atenções no Rio Grande do Sul, relegando ao segundo plano a situação dos municípios. Apesar de ser um fenômeno recente, agravado nos últimos anos, a deterioração das finanças locais caminha para o mesmo desfecho trágico e exige atenção.
– As pessoas não estão se dando conta de que o colapso não se reduz a números. Está se materializando lá na ponta, no atendimento ao cidadão. É isso o que está em jogo e que mais nos preocupa – diz o prefeito da Capital, José Fortunati, vice-presidente de relações institucionais da Frente Nacional de Prefeitos.
A origem do problema, segundo o economista e geógrafo François Bremaeker, gestor do Observatório de Informações Municipais, remonta aos anos de 1980. A partir dali, as atribuições das prefeituras se multiplicaram, mas a fonte de recursos não seguiu a mesma lógica.
Em 1983, uma emenda constitucional determinou que os prefeitos deveriam aplicar no mínimo 25% das receitas de impostos em educação. Com a Constituição de 1988, a exigência foi estendida às "receitas de transferências", isto é, aos valores endereçados pela União e pelos Estados aos governos locais – hoje, o principal provedor, para 81,5% das cidades, é o Fundo de Participação dos Municípios (FPM).
Depois disso, em 2000, outra emenda exigiu o aporte de pelo menos 15% das receitas de impostos e transferências em saúde. Naquele mesmo ano, entrou em vigor a Lei de Responsabilidade Fiscal, criada para regrar o uso do erário e penalizar maus gestores, que passaram a ser fiscalizados de perto pelos tribunais de contas.
– A muito custo, em função do aumento dos encargos, os municípios conseguiram ampliar em 1% o repasse do FPM em 2007 e em mais 1% em 2014. Mesmo assim, foi muito pouco. As receitas não acompanharam as despesas – afirma Bremaeker.
Nos anos 2000, as demandas continuaram aumentando. Foram aprovadas leis importantes, que instituíram avanços sociais como o piso nacional do magistério, a ampliação das creches e pré-escolas, a substituição dos velhos e insalubres lixões por aterros sanitários e os portais de transparência na internet.
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Embora reconheçam a validade das medidas, os gestores municipais reclamam dos custos envolvidos e da falta de autonomia financeira. Argumentam que as condições de governabilidade estão corroídas.
– Somos o elo mais fraco da cadeia. Os recursos estão centralizados na União e nos Estados, mas é nos ombros dos prefeitos que recaem as cobranças. O cidadão não quer saber se o governo federal ou estadual atrasou a verba do SUS. Quer ser atendido – diz Luiz Carlos Folador, presidente da Famurs e prefeito de Candiota, na Metade Sul.
Principal motivo de críticas, o bolo tributário é dividido da seguinte forma: 58% da arrecadação fica com o governo federal, 24% com os Estados e apenas 18% com as administrações locais. Desde a década de 1990, devido ao surto de emancipações no Brasil, a menor fatia ainda teve de ser repartida em mais pedaços. Só no Rio Grande do Sul, foram criados 164 municípios entre 1992 e 1996, um acréscimo de 49%.
– Na prática, isso pulverizou ainda mais verbas que já eram escassas – explica Bremaeker.
As emancipações foram aprovadas sob forte pressão de pequenos distritos que se consideravam abandonados pelas sedes. Hoje, essas cidades – em sua maioria com menos de 10 mil habitantes – estão entre as mais necessitadas de recursos que independem da vontade dos prefeitos, como nos casos de Santo Expedito do Sul e Tupanci do Sul, no norte do Estado, e Travesseiro, no Vale do Taquari.
– Quanto menor o município, maior a dependência – sintetiza o economista Liderau dos Santos Marques, da Fundação de Economia e Estatística (FEE).
A dependência é maior onde há menor capacidade de gerar receita própria, composta principalmente por impostos, taxas e contribuições municipais – em especial o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS).
Ambos são naturalmente turbinados em núcleos urbanos mais desenvolvidos ou onde existe algum diferencial econômico, mas nem sempre as prefeituras são eficientes na cobrança – em 2013, conforme estudo do TCE, 96% delas sequer tinham fiscais específicos para atuar na área tributária.
No caso do IPTU, muitas plantas imobiliárias estão desatualizadas e mantêm valores defasados. É sobre essas cifras que se calcula a quantia a ser cobrada dos proprietários. Para não se indispor com o eleitorado, alguns prefeitos evitam promover alterações. Outros tentam, mas não conseguem apoio no Legislativo, e o potencial de arrecadação fica prejudicado.
– É claro que existe má gestão e, nesses casos, a situação financeira é ainda pior. Mas os bons gestores também estão sofrendo com a falta de dinheiro. O fato é que o atual modelo não está funcionando. Vai chegar o momento em que os municípios vão começar a quebrar como os Estados – alerta o economista Ely José de Mattos, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Todas as prefeituras, grandes ou pequenas, prósperas ou não, precisam do FPM para se manter, mesmo as campeãs em receita própria – a maioria está no Litoral Norte e se destaca na captação de IPTU, como Xangri-lá. Até Porto Alegre, onde mais da metade dos recursos é gerada na cidade, necessita dessas verbas.
De responsabilidade da União, o FPM é constituído de parte do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto de Renda. Nos primeiros cinco meses deste ano, o montante caiu 12,5% em termos reais, em relação ao mesmo período de 2015.
Outra fonte vital de recursos é o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS). Nesse caso, os Estados são obrigados a destinar 25% da arrecadação para as prefeituras. A recessão também frustrou as expectativas. Em 2015, conforme a Famurs, os municípios deixaram de receber R$ 956 milhões do que estava previsto em FPM e ICMS. Nos últimos quatro anos, a defasagem é estimada em R$ 2,6 bilhões.