Eleito presidente da República com mais de 60,3 milhões de votos, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi consagrado pela terceira vez nas urnas na disputa pelo cargo de maior poder no Brasil. O resultado, embora suficiente para lhe dar a vitória, representou 50,90% dos votos válidos, ante 49,10% de Jair Bolsonaro (PL). Ou seja, existe ambiente de divisão no país e, nos últimos tempos, a violência política escalou.
Na campanha e nas primeiras manifestações após eleito, Lula reiterou que fará um governo de pacificação e de unidade nacional, focado na retomada da economia e redução da pobreza. A reconciliação do Brasil consigo mesmo, inclusive entre as famílias, é uma tarefa que se mostra complexa.
Quatro setores, nos últimos anos e na eleição, se aproximaram fielmente do bolsonarismo e mostraram ser grandes polos de oposição ao lulismo: evangélicos, empresariado, agronegócio e militares. Veja, a seguir, os caminhos e óbices para a possível reconstrução de pontes entre Lula e os segmentos, na busca pelo projeto de pacificação.
Empresários: a economia antes da ideologia
O empresariado foi núcleo de resistência a Lula na eleição e isso pode ser medido pela explosão de denúncias de assédio feitas ao Ministério Público do Trabalho a respeito de empregadores que estariam pressionando funcionários para que votassem em Jair Bolsonaro. Foi um fenômeno que atingiu desde indústria de máquinas com milhares de empregados até padaria de cidade pequena do Interior.
Embora o setor seja refratário ao lulismo, a leitura é de que a resistência entre empresários pode ser mais facilmente contornada em comparação com outros núcleos. E a explicação é simples: para a maioria dos empreendedores, antes da ideologia, vem a economia. O futuro governo avalia que, se conseguir emplacar uma política "equilibrada", como fez entre 2003 e 2010, somada ao bom desempenho das commodities e alavancagem de programas sociais, as resistências serão reduzidas.
Lula, quando questionado sobre o desgaste da relação, costuma responder que os empresários “nunca ganharam tanto dinheiro” como nos dois primeiros mandatos dele.
— Retomar o investimento no Minha Casa, Minha Vida significa voltar a ter inclusão social com moradia para o pobre. Ao mesmo tempo, alavanca a indústria da construção civil e faz crescer a geração de emprego — defende o senador Paulo Rocha (PT-PA).
Ele diz que a indústria e a ciência e tecnologia serão prioridades para ampliar o mercado de trabalho. Em 2021, a indústria teve participação de 22,2% no Produto Interno Bruto (PIB). É setor idealizado pelo governo eleito como destino de políticas de incentivo pela capacidade de geração de empregos com boas remunerações.
Possíveis iniciativas
Entidades
Às vésperas do segundo turno da eleição presidencial, a Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs) publicou anúncio publicitário "sinalizando apoio" à reeleição de Bolsonaro, ainda que sem citar o então candidato diretamente. Presidente da Fiergs, Gilberto Petry diz que a manifestação foi fruto do entendimento de que a economia está indo bem, com recuperação do emprego e do PIB. Ele pondera que a entidade vê com bons olhos o diálogo com o governo eleito.
— Se a atividade industrial não estivesse andando, não teríamos nos manifestado a favor (da continuidade). O sentido foi mostrar que estávamos favoráveis a continuar com essa atividade econômica. Eu não misturo as coisas da política. O meu pensamento é um: sou liberal de direita, mas não vou fazer a economia trancar porque não gosto de A ou B. Tenho de pagar minhas contas como empresário, meu negócio precisa andar – diz Petry.
Preferências pessoais de lado, ele resume o que interessa ao setor:
— País crescendo, PIB crescendo, pedidos entrando, indústria faturando, pagando impostos e sobrando um tanto para reinvestir.
A Fiergs, em conjunto com a Confederação Nacional da Indústria (CNI), pretende apresentar ao governo eleito a proposta de criação do Ministério da Indústria. A reivindicação parte do sentimento de que o setor é de alta relevância para a economia e precisa de políticas específicas. A avaliação é de que, atualmente, o Ministério da Economia centraliza muitos setores da gestão pública atrelados ao desenvolvimento.
— Tu precisas ter alguém cuidando do teu assunto — avalia Petry.
O posicionamento mostra que há jogo e possibilidade de conciliação.
Temas
Na discussão de pautas, é provável que o novo governo Lula encontre convergências e divergências nos seguintes temas: reforma tributária, financiamentos públicos a juro baixo e possível revisão de pontos da reforma trabalhista.
— À medida que tivermos políticas públicas que fortaleçam setores econômicos, eles vão perceber migração rápida das suas bases que não estão interessadas no discurso em que a ideologia de extrema-direita é colocada acima dos interesses econômicos. O orçamento do Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) hoje é de R$ 6 bilhões. Isso é 20% do que era no nosso governo. Vamos retomar investimentos e obras paradas — diz o deputado federal reeleito Paulo Pimenta, presidente do PT do RS.
Ele avalia que, com o tempo, manifestações de empresários de cunho ideológico e de oposição a Lula irão se tornar “sem sentido”:
— Há lideranças que foram instrumentalizadas por discurso falacioso que chega a beirar o ridículo. Dizer que vai voltar o comunismo? Lula governou por oito anos e a relação sempre foi respeitosa, todos viram a economia crescer. Lula sempre foi presidente para todos. Essa página (Bolsonaro) vai ser virada.
Relacionamento
O vice-presidente eleito Geraldo Alckmin (PSB-SP) será protagonista na relação com o empresariado. Inclusive, esteve com Lula em agenda de campanha na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), em agosto.
O deputado federal reeleito Alexandre Padilha (PT-SP) e o Grupo Prerrogativas, integrado por profissionais do Direito, foram interlocutores frequentes de Lula com o mercado, inclusive em encontros promovidos com grandes empreendedores nacionais antes do pleito.
Embora veja resistências, houve retomada de diálogo e Lula não pode ser considerado isolado nesse front. No decorrer da disputa, colheu sinalizações de apoio e declarações de voto de criadores do Plano Real, de economistas renomados como Henrique Meirelles, Armínio Fraga e Monica de Bolle, de empresários de proa, como Pedro Passos, cofundador da Natura, e de banqueiros.
Evangélicos e a disputa pela família
O segmento dos evangélicos, politicamente ligado a Jair Bolsonaro, representará um dos desafios para que Lula consiga cumprir a promessa de fazer um governo de união nacional e com governabilidade. Os evangélicos são o segundo maior segmento religioso do Brasil, atrás apenas dos católicos, mas têm obtido destaque crescente por serem presentes e fervorosos nos templos, locais de reza, mas também de pedido de votos.
A força de seus líderes na política também é notória. Na campanha eleitoral, Lula teve de enfrentar oposição da maioria dos pastores e bispos, incluindo alguns populares em igrejas e redes sociais, como Silas Malafaia, Edir Macedo e André Valadão. Buscar aproximação com o setor é importante para que Lula obtenha melhor governabilidade, considerando a existência da bancada evangélica no Congresso, mas também é algo decisivo quando se pensa no futuro do projeto político: a tendência é de que esse segmento seja cada vez mais relevante nas urnas.
Pesquisa do Datafolha publicada em janeiro de 2020 apontou que 31% dos brasileiros são evangélicos.
— É um grupo religioso que cresce ano a ano e incentiva o pertencimento à comunidade religiosa. As pessoas constroem espaços de percepções políticas, morais, econômicas. As igrejas evangélicas são esses espaços, uma organização social que permite às pessoas se verem enquanto coletivo. Elas vão votar parecido e disputar a política de forma cada vez mais parecida. É muito importante compreender as demandas desse grupo e pensar no diálogo – diz Jacqueline Moraes Teixeira, especialista em política e evangélicos e professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB).
Possíveis iniciativas
Carta
Durante a campanha, já no segundo turno, Lula foi convencido por aliados a lançar a carta aos evangélicos. No documento, o presidente eleito se comprometeu com a liberdade religiosa e rechaçou boatos de que seria favorável a banheiros unissex, ao aborto e ao fechamento de igrejas. Ele destacou ter sancionado, nos seus primeiros dois governos, o Dia Nacional da Marcha para Jesus e a Lei da Liberdade Religiosa. Embora o tom do documento fosse de conciliação, Lula criticou a instrumentalização política da fé e também o “pastor que mente”.
A avaliação de especialistas é de que, caso decida fazer propostas no campo moral, Lula deverá enfrentar forte resistência da comunidade evangélica, sobretudo do seu público formado por famílias de classes média e alta do Sul e do Sudeste, os mais suscetíveis à agenda dos costumes.
— É um público de risco, de grandes denominações evangélicas e de grande peso político — destaca Jacqueline Moraes Teixeira, especialista em política e evangélicos e professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB).
Veia econômica
Na campanha, proposições relacionadas às questões de gênero passaram ao largo dos planos de Lula, focados na recuperação econômica, geração de emprego e renda. Petistas dizem que vão mostrar ser “a favor da família” ao reforçar programas sociais e as políticas de desenvolvimento econômico. Aliados de Lula dizem que esse é o caminho: alavancar a condição econômica de mães e pais, e dar mais oportunidades aos filhos. E, com isso, disputar o evangélico não pelo conservadorismo, mas pela veia econômica.
— Não somos contra a família. Fizemos o Minha Casa, Minha Vida, o Luz para Todos, o Mais Médicos e o Bolsa Família exatamente porque nos preocupamos com a família. Melhorar a condição de vida é cuidar das famílias — afirma o senador Paulo Rocha (PT-PA).
Jacqueline Moraes Teixeira considera acertada a estratégia de disputar o tema da família entre o segmento. Apesar de as pesquisas indicarem que Bolsonaro tinha cerca de dois terços dos votos nesse eleitorado, a pesquisadora salienta que uma parcela dos evangélicos, formada sobretudo por mulheres negras, tem a sua percepção da vida transpassada pelos temas econômicos, e não apenas pela agenda da família conservadora. Foi esse contingente, diz ela, que mais resistiu a votar em Bolsonaro nas igrejas, apesar do “bombardeio” de fake news sobre o fantasma do comunismo e a ideologia de gênero. A base para essa resistência esteve na ideia de que a vida foi mais próspera nos governos de Lula em comparação com o de Bolsonaro.
— A questão é disputar a família. Mostrar o quanto não é uma pauta específica e moral de um governo de direita. Família é tema de subsistência que atravessa outras instâncias de governo — diz Jacqueline.
Interlocutores
Os evangélicos sentiram-se prestigiados durante o governo Bolsonaro e, agora, somente palavras e intenções não deverão ser suficientes para garantir uma relação positiva com o governo eleito. Um dos interlocutores de Lula para costurar aproximação deverá ser o bispo Romualdo Panceiro, ex-número dois da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Ele foi um dos poucos do nicho a declarar voto no presidente eleito.
Depois da vitória de Lula, pode-se perceber que alguns líderes religiosos baixaram a fervura. Malafaia manteve postura de oposição, mas disse que iria orar pelo presidente eleito. O bispo Edir Macedo, líder da IURD, falou em “perdão”, “bola pra frente” e disse que Lula foi eleito por “vontade de Deus”.
— Estamos falando de um grupo que, no caso dessas lideranças, de alguma maneira tem interesses muito fortes em relação ao Estado — diz a pesquisadora da UnB, recordando que denominações evangélicas apoiaram Lula nos seus dois primeiros governos.
O afastamento em relação ao PT ocorreu depois da saída de Lula da Presidência, em 2010, e tornou-se um abismo com a ascensão do bolsonarismo.
Já entre os aliados políticos, o presidente eleito deve contar com o fiel escudeiro Gilberto Carvalho, um dos elaboradores da carta aos evangélicos. O vice-presidente eleito Geraldo Alckmin (PSB-SP) deverá ter importância nas conversas com o segmento, considerando seu histórico de homem de fé. O mesmo vale para Marina Silva (Rede-SP) e Benedita da Silva (PT-RJ), ambas evangélicas. A senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) também foi uma liderança ativa no segundo turno no palanque de Lula. Ela é evangélica e potencial auxiliar na articulação com o segmento.
Agronegócio: ideologia, produção e preservação
O agronegócio está entre os setores mais refratários ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e construiu histórico de engajamento em atos a favor do presidente Jair Bolsonaro. O Brasil é um grande exportador de commodities, sobretudo a soja. A proteína animal também é destaque. Em maio de 2022, a agropecuária teve participação de 51% nas exportações do país. Está claro que a questão climática e a proteção da Amazônia são prioridades na agenda de Lula, o que será um desafio na relação: convencer de que não é preciso desmatar mais para plantar soja e criar gado.
O presidente eleito tem afirmado que, no mundo moderno, uma floresta de pé e rios despoluídos têm alto valor, seja para atrair investimentos ou ampliar mercados no Exterior. Em entrevista ao Jornal Nacional no primeiro turno, ele afirmou que “empresários sérios que trabalham no agronegócio” não querem desmatar e entendem a preservação como importante, mas citou grupos “fascistas e direitistas” que seriam favoráveis à destruição ambiental. Embora tenha procurado diferenciar as condutas, essa frase foi usada contra Lula no nicho.
Será necessária estratégia que ecoe no setor e concilie o desenvolvimento econômico, a produção crescente e o refluxo do desmatamento amazônico.
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Investimentos
A aposta de aliados do presidente eleito é retomar a política de investimentos para derrubar resistências. Azeitar o relacionamento é necessário na medida em que o agronegócio teve participação de 27,4% no Produto Interno Bruto (PIB) em 2021.
— No governo Lula, tratamos o agronegócio a pão de ló. Quando assumimos, tínhamos R$ 26 bilhões no Banco do Brasil para investir no agro. Foi o valor deixado pelo governo Fernando Henrique. No final dos 13 anos de governos do PT, tínhamos R$ 180 bilhões no Banco do Brasil para aplicar. Não há razão para tensionamento. Tentam usar os sem-terra como ameaça. É ao contrário. Foi no governo Lula que essa questão se distensionou — afirma o senador Paulo Rocha (PT-PA), um dos escalados para atuar na transição.
Entre os aliados de Lula, estabelecer relação menos belicosa com lideranças do agronegócio passa pela política que obteve holofotes nos dois primeiros mandatos, entre 2003 e 2010: Plano Safra, financiamento a juro baixo e, para as propriedades de menor porte, programas sociais como o Luz para Todos e incentivo à produção de alimentos.
Movimentos sociais
Outro desafio do governo eleito será manter sob controle eventual radicalização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), o que certamente levantaria mais tensões no campo pelo fantasma das ocupações e invasões. Na campanha, ao comentar o assunto, Lula indicou que o MST tem, hoje, outro perfil de movimento, sendo o “maior produtor de arroz orgânico do Brasil” — na verdade, é o maior da América Latina. Ou seja, ao mencionar isso, quis indicar que a organização está dedicada a plantar e colher nos assentamentos.
Lula deverá recriar o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDR), ainda que possa ter outra nomenclatura. Essa pasta obteve visibilidade nas suas gestões anteriores, cujo objetivo foi promover políticas especialmente para as cooperativas, assentamentos e pequenas propriedades rurais. Seria um sinal de atenção ao setor, embora o atrito maior resida na relação com os grandes produtores.
— As resistências são insustentáveis porque meramente ideológicas. Do ponto de vista prático, Lula foi quem possibilitou o avanço e a modernização do agronegócio. A única coisa que Bolsonaro efetivamente garantiu foi o direito de portar arma. É uma relação fácil de ser retomada a partir do momento que se surpreenda com uma agenda consequente e de interesse nacional, que aprimore as relações comerciais e abra novos mercados — diz o senador Renan Calheiros (MDB-AL), aliado de primeira hora do presidente eleito.
Ele acrescenta ao dizer que o atual Código Florestal possibilita a “pacífica convivência” entre preservação e produção.
— Precisamos de uma agenda para desfazer os resquícios de fascismo que o Bolsonaro utilizou para dificultar a convivência do meio ambiente com o agronegócio. Ele joga com conflitos. Isso passou e tem de ser enterrado. É fundamental ter maioria no Congresso para materializar essas prioridades — afirma Renan.
Articulação
Apesar de haver animosidades, Lula conta com apoios de peso no setor. O principal deles é o do ex-governador do Mato Grosso, ex-senador e ex-ministro da Agricultura Blairo Maggi. Para buscar mais trânsito e construir diálogo com o mercado, Maggi, um dos maiores produtores de soja do Brasil, deverá ser um dos braços amigos do novo governo.
Outra aliada importante é a senadora Simone Tebet (MDB-MS), candidata à Presidência que, no segundo turno, entrou de cabeça na campanha de Lula e conquistou notoriedade e reconhecimento.
Tebet é ligada ao agronegócio e sua base eleitoral, o Mato Grosso do Sul, é um Estado de importante produção. Ela já foi cotada para ser ministra da Agricultura, apesar de especulações de que a emedebista teria preferência pela pasta da Educação. Nos bastidores, o comentário recorrente é de que a única hipótese de Tebet ficar de fora da Esplanada dos Ministérios é se ela não quiser participar do novo governo.
Outro nome importante que fez costuras políticas por Lula no setor desde a campanha é o da ex-ministra da Agricultura e senadora licenciada Kátia Abreu (PP-TO). Ligada ao agronegócio, é uma auxiliar na construção de pontes políticas.