Com 343 mil habitantes, Pelotas é o quarto maior município gaúcho. Mesclando características cosmopolitas e interioranas, o principal centro econômico e cultural do sul do Estado está prestes a eleger novos governantes para lidar com antigos problemas. Na abertura da série de reportagens sobre os desafios dos futuros gestores das maiores cidades do Interior, GZH deparou com uma Pelotas em que um terço do território não tem rede de esgoto, um quarto da população precisou recorrer ao auxílio emergencial do governo federal e a rede pública de ensino apresenta um dos 41 piores resultados do Estado no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) para os anos iniciais.
Em consulta a entidades e instituições do município, a educação, o desemprego e o saneamento básico foram apontados como os três problemas mais urgentes para o próximo prefeito. No dia 15 de novembro, os 240.948 mil eleitores de Pelotas terão a sua frente 11 candidatos na urna eletrônica. É neles que reside a esperança de quem vive à beira de valetas fétidas na periferia, sustenta a família com trabalho informal e se angustia com a estagnação dos filhos na escola do município.
Para definir os três principais desafios para o futuro governante de Pelotas, GZH consultou: Pedro Hallal, reitor da Universidade Federal de Pelotas; Valdir Duarte, presidente da União Pelotense das Associações Comunitárias e Afins; Amadeo Fernandes, presidente da Aliança Pelotas, entidade que reúne as principais instituições empresariais da cidade.
Saneamento básico
A vida diante das valetas
De 15 em 15 dias, Belda Borges Pinto tem um compromisso com a própria saúde. A despeito dos 71 anos que começam a lhe envergar a coluna, a pensionista acorda cedo, separa o ancinho e a enxada e vai até a frente de casa. Ali, passa a manhã cavoucando a valeta que percorre toda a extensão do terreno.
Há 20 anos morando na Rua 18 do bairro Getúlio Vargas, na periferia de Pelotas, Belda sabe que precisa desentupir pessoalmente o esgoto a céu aberto. Nesse período, assegura, jamais as equipes da prefeitura apareceram para retirar o excesso de água, de dejetos e de lixo que transformam o valão de 20 metros de comprimento por 1,5 metro de largura numa sanga pútrida.
Em 5 de outubro, uma segunda-feira, a chuva acumulada no final de semana quase fazia transbordar a valeta. A superfície estava tomada de algas, fruto da decomposição da matéria orgânica presente no esgoto sem tratamento. Com o sol aparecendo após três dias de precipitação, aos poucos o mau cheiro empesteava a rua.
– Esses poucos canos que tem aí, eu que paguei para botar. E se eu não limpar, ninguém limpa. Daí quando chove, enche e alaga. Por pouco essa água preta não entra em casa. A gente fica com medo de doença, ainda mais agora com essa febre que anda aí – desabafa Belda, citando a pandemia de coronavírus.
Com cerca de 5 mil moradores, o bairro Getúlio Vargas tem uma das piores coberturas de saneamento básico de Pelotas. Nos 68 quarteirões, apenas 1,7% das casas têm acesso à rede de esgoto. A poucos metros da casa da dona Belda, Talita Gonçalves cruzava as ruas desviando das poças d’água, enquanto trazia pela mão o filho Pietro, dois anos. Aos 20 anos, a dona de casa sofre com a falta de saneamento básico e de calçamento nas vias do bairro. Há poucos dias, ela precisou levar o menino ao pronto-socorro, após o súbito surgimento de bolinhas vermelhas na pele.
– Foi de brincar na terra, perto da valeta. É brabo, a criança quer brincar, mas não posso deixar. É ele correndo e eu correndo atrás – lamenta Talita.
Educação
A angústia da alfabetização que vem tarde
A aflição chega com hora marcada na casa da atendente Márcia Gonzales Lima, 36 anos. Todas as tardes, tão logo ela encerra o expediente no estacionamento onde trabalha e mora com os três filhos, no centro de Pelotas, ela tenta ajudar a caçula Manuela a fazer o dever de casa. Aos sete anos, cursa o 2º ano do Ensino Fundamental na Escola Municipal Nossa Senhora do Carmo, mas ainda não sabe ler nem escrever.
– Eu boto os temas e ela não lê. Eu digo as letras e ela não sabe, não lembra. Os professores passam um texto e pedem que ela faça um resumo. Como, se ela não sabe ler? Eles dizem: “Ajuda ela, mãe”. Mas vou ajudar como? – angustia-se Márcia, que estudou até a 6ª série.
Com Ideb de 5,2 nos anos iniciais do Ensino Fundamental na rede pública, quando a meta era de 5,7, Pelotas atingiu um dos 41 piores índices entre os municípios do Estado.
Com índice 3,9, a Escola Nossa Senhora do Carmo tem o pior índice da rede pública para os anos iniciais. São cerca de cem alunos, da pré-escola ao 5º ano do Ensino Fundamental, todos mantidos em aulas online desde março. Todavia, somente 30% dos estudantes têm acesso à internet. O conteúdo é repassado via WhatsApp ou com a entrega de material impresso, suspenso toda vez que o mapa de controle da pandemia coloca Pelotas em bandeira vermelha.
Para Márcia, o confinamento o atrasou ainda mais o processo de aprendizado dos filhos, dois deles matriculados em escolas municipais. Diogo, 13 anos, saiu da Nossa Senhora do Carmo no ano passado e, antes de a pandemia suspender as aulas presenciais, já tinha dificuldades para acompanhar os novos colegas. Eric, 17 anos, tem necessidades especiais e estuda num centro de reabilitação.
– O Eric está aprendendo aos poucos. O Diogo agora está melhor, conseguindo acompanhar os professores. A Manuela é quem me deixa mais preocupada, porque vejo o ano passar e a criança não está evoluindo. Sem saber ler e escrever, ano que vem ela vai empacar. Não é fácil explicar, fazer ela entender – desabafa Márcia.
Desemprego
A incerteza e as preocupações com o trabalho informal
Sentado na mureta do chafariz das Três Meninas, em pleno centro nervoso de Pelotas, Marcos Müller passa os dias esperando o celular vibrar.
Ao primeiro toque do aparelho, corre em direção à motocicleta para buscar mais uma das 20 encomendas diárias que recebe de aplicativos de telentrega. Aos 52 anos, Marcos está desempregado desde 2017. À época, era operador de máquinas numa empresa de beneficiamento de arroz, onde trabalhou por dois anos e oito meses. Demitido, ficou um ano perambulando pela cidade distribuindo currículos.
– Tenho experiência em várias funções. Já trabalhei na construção civil, em posto de combustíveis, operando máquinas. Toda vez que eu deixava o currículo, diziam que entrariam em contato, mas o contato nunca veio – lamenta Müller.
Depois de um ano sem conseguir recolocação, Marcus resgatou uma bicicleta que tinha em casa e se cadastrou em um aplicativo de entregas. Somente 11 meses depois, após muita economia, conseguiu reformar uma moto para usar no serviço. Motorizado, aumentou a renda com mais entregas. Mesmo assim, ainda não sobra dinheiro para voltar a contribuir com o INSS.
– Antes, no emprego antigo, eu tinha plano de saúde, previdência. Agora não tenho nada, fico preocupado em não ter proteção na velhice – comenta.
Diante de Müller, dezenas de vendedores ambulantes se espalham pelo Calçadão de Pelotas, dando rosto à informalidade do mercado de trabalho local. Como parte dessas pessoas são invisíveis nas estatísticas, uma amostra numérica pode ser percebida no recebimento do auxílio-emergencial do governo federal. Mesmo tendo a quarta maior população gaúcha, Pelotas só ficou atrás de Porto Alegre no aporte de recursos, com R$ 302,8 milhões repassados a 97,1 mil pessoas, superando cidades maiores como Caxias do Sul e Canoas.
– Espero que os próximos governantes ajudem a atrair indústrias para Pelotas. São elas que geram maior volume de emprego. Aqui, hoje só tem só comércio, farmácia e posto de gasolina – diz Müller.