Não são mais exceções os casos de discursos de ódio na sociedade. O mês de março repercutiu intensamente os episódios do vereador de Caxias do Sul, Sandro Fantinel — que fez uma declaração xenofóbica ao se referir aos baianos em plenário da Câmara Municipal em 28 de fevereiro — e do deputado federal de Minas Gerais, Nikolas Ferreira (PL-MG) — que vestiu uma peruca loira na tribuna do Congresso Nacional e ironizou mulheres trans.
No Big Brother Brasil, a manifestação de três participantes do reality a respeito da religião de um quarto integrante do programa gerou debates sobre racismo e intolerância religiosa, dentro e fora da casa. Também são frequentes os casos de famosos "cancelados" nas redes sociais por manifestações que desagradam público e até patrocinadores. Além disso, existem os casos com menor repercussão, que ocorrem no dia a dia na sociedade, envolvendo pessoas comuns, e que nem sempre são repercutidos ou denunciados pelos envolvidos, por medo de represálias ou por desacreditar no sistema policial ou judiciário.
Em uma análise histórica, o ex-prefeito de Caxias do Sul, Mansueto Serafini, lamenta os discursos de ódio que ocorrem atualmente na esfera política, em torno da polarização que identifica entre os adversários. Serafini comandou Caxias por duas gestões, entre 1979 e 1982, pelo MDB (em meio à ditadura militar, era o único partido de oposição à Arena, sigla do governo federal) e depois entre 1989 e 1992, pelo PTB.
— Política é entendimento. Quando se trata do interesse público, deve existir a união de todos. O interesse público está acima dessas divergências, que em nada contribuem para o país. Eu sempre tive o diálogo com os adversários. Lembro de um encontro com o ex-presidente João Figueiredo, que, diga-se de passagem, foi quem redemocratizou o Brasil. Eu mantive com ele um amplo diálogo na Festa da Uva de 1981. Estava falando amenidades com ele, como era um prefeito recebendo um presidente não podia ser mal educado, mostrando ser oposicionista. Em um momento, ele disse: "quero falar política contigo". E então ele pediu apoio da oposição para a redemocratização do país, disse que faria isso custasse o que custasse, e realmente o fez — destacou.
Socialmente, o filósofo, professor e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), Luiz Felipe Pondé, e o psicanalista, professor e doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, Luís Carlos Petry, têm visões parecidas sobre os discursos de ódio. Os dois concordam que as redes sociais amplificam a relação negativa entre as pessoas, por tornar visível esse tipo de discurso preconceituoso. Pondé justifica que essas manifestações ocorrem porque "os seres humanos odeiam e sempre odiaram", enquanto Petry associa a uma diminuição da capacidade do amor em relação às outras pessoas, que está na base desse discurso de "desamor e ódio".
Em entrevista ao Pioneiro, eles discorreram sobre os motivos que geram manifestações de ódio e o que pode ser feito para coibir estas práticas preconceituosas. Confira:
Por que ocorrem discursos de ódio?
Luiz Felipe Pondé:
"Porque os seres humanos odeiam. Sempre odiaram. Acho que o estranho seria se não existisse nenhum discurso de ódio. Isso não significa que discursos de ódio são bonitos, significa que os seres humanos odeiam. Odeiam uns aos outros, amam outros, entram em conflitos. O paradigma que assume que os discursos de ódio são uma patologia é alimentado pela alienação contemporânea. O que acontece hoje é que, a medida que você aumentou de forma gigantesca a visibilidade do que as pessoas falam, inclusive os políticos, como isso cresceu de forma exponencial com as redes sociais, esse tipo de discurso vai se tornando visível.
Um outro efeito da sociedade em rede é que os antagonismos se manifestam. A política, que está dentro disso tudo, é sabidamente o território da violência, dos atritos, dos conflitos entre interesses e visões de mundo. E na medida em que as redes sociais são hoje uma ferramenta fundamental na política, esses discursos de ódio se espraiam para todos os lados. Aí de repente você acorda e o cara está com uma peruca debochando de mulheres trans, mas todo mundo sabia que ele pensa isso, ele foi o deputado mais votado do país.
É claro que discurso racista, por exemplo, que antes podia ficar no escuro e hoje aparece, normalmente é feito por gente debochada e às vezes por gente ignorante, provinciana, que está acostumada a usar um vocabulário entre os amigos, e esquece que a Câmara de Vereadores ou de Deputados não é mais um clubinho daquela classe."
Luís Carlos Petry:
"É uma combinação de elementos dentro um fator histórico, não é um autor único. O ingresso do Brasil em uma vertente econômica neoliberal contribuiu para que os laços sociais das pessoas na comunidade em que elas vivem e nas comunidades de trabalho começassem a ruir. E então começou a crescer o individualismo das pessoas.
O segundo fator é o fato de que não tivemos reparação histórica com os processos da escravidão e da ditadura militar. Temos no Brasil, nos últimos 20 anos, uma espécie de incentivo a posições que remontam a uma ideia de exclusão social, de diferenciação social por conta disso. O panorama é muito amplo, e se você fizer uma relação disso com a sociedade das redes sociais, onde temos uma certa banalização do outro, a gente não conseguiu ficar no aspecto construtivo da mídia, e o que acabou gerando é um enxame de vespas agressivas.
O terceiro fator é o enfraquecimento das estruturas de regulação política e também da mídia, onde a política se insere. O digital acabou por propiciar uma alienação do sujeito humano por trás dos dedos que teclam nos dispositivos móveis ou no computador. Progressivamente, com a criação das redes sociais, as pessoas começaram a se comparar e ficar "sozinhas juntas". As pessoas viajam dentro das redes sociais dentro de um nível emocional que se diferencia muito das relações diretas que elas têm com outras pessoas, onde as coisas ficam até as vezes exageradas."
Conseguimos coibir esses discursos?
Pondé
"Não. Eu não acho que esse tipo de situação possa ser facilmente resolvida. Como você conseguiu fazer com que as pessoas usassem cinto de segurança? Multando, além de campanhas de esclarecimento, de como o cinto de segurança pode salvar sua vida, mas multando. Educação é importante, mas não resolve, nada resolve sozinho. Socialmente falando, o cancelamento, perda de emprego. Explicar essas situações e combater racismo, por exemplo, nas escolas ajuda, sem dúvida. Agora, dizer que isso vai resolver o problema, não. O problema pode ser mitigado, o preconceito pode ir em direção a outro grupo.
O estranho seria se não existisse nenhum discurso de ódio. Isso não significa que são bonitos, significa que os seres humanos odeiam
LUIZ FELIPE PONDÉ
Sobre discursos de ódio
Algumas pessoas acham que é possível mudar a sociedade através da educação. Eu trabalho com educação há muitos anos e não tenho essa certeza toda. Inclusive porque eu acho que o ser humano tem como uma das vocações fazer julgamentos rápidos, generalistas e espontâneos, o que é conhecido na filosofia como preconceito. Então ele pode mudar de objetos de preconceito. A verdade é que o ser humano não gosta de ouvir opiniões com as quais ele não concorda. Nesses casos, se ele for uma pessoa mal educada, se não tiver uma forma de filtro profissional, consciência de riscos naquele momento, ele pode vir a proferir discursos irresponsáveis.
À medida que a sociedade fica mais conflitiva, como está ficando no seu dia a dia, isso acaba demandando mais mediações jurídicas. Se a pessoa está em um extrato muito vulnerável da pirâmide social, pode ser que não aconteça nada com ela. Já existem mecanismos hoje, com todas as imprecisões, não são perfeitos, nem acredito que vá fazer do Brasil ou qualquer outra sociedade um paraíso em 30 anos. O que garante uma condição um pouco menos pior de vida em sociedade é um estado um pouco mais organizado e condições materiais de sobrevivência menos desiguais."
Petry
"Temos que fazer uma diferenciação entre o que é um pensamento conservador e o que é um pensamento fascista, de extrema-direita. Um pensamento conservador é democrático. A linha de conversa e diálogo com os adversários está colocada, é acessível. Já o pensamento da extrema-direita não acredita na democracia e trabalha num conceito de massas, de comunicação para bolhas específicas. Essa estrutura é perigosa, e nós temos que trabalhar não só para que não cresça, mas para que aquelas pessoas que estão envolvidas no pensamento fascista possam sair disso. E só podemos conseguir isso através de um programa educacional voltado especificamente para a retomada da conversa e do diálogo, e a lei precisa ser aplicada.
Temos no Brasil, nos últimos 20 anos, incentivo a posições que remontam a uma ideia de exclusão e diferenciação social
LUÍS CARLOS PETRY
Sobre discursos de ódio
Esta diminuição da capacidade do amor em relação às outras pessoas é o que está na base do que nós estamos vivendo dentro desse discurso de desamor e ódio. O que nós precisamos incentivar são os discursos para que as pessoas possam se reconectar com o amor, com a solidariedade e com a valorização do outro, como voz, como sujeito, como cidadão, como pessoa, e isso é muito demorado. Vamos passar pelo menos uns 30 anos sofrendo com isso.
A curto prazo, somente se a lei for aplicada e se forem garantidos os direitos do cidadão. É uma forma de se colocar os limites. A democracia não é você fazer o que quiser, mas fazer as coisas dentro do contrato social, que pode não ser o melhor do mundo, mas é o que nos garante viver em sociedade. Isso tem que ser respeitado. "