O WhatsApp transformou a forma de comunicação entre as pessoas na internet. Atualmente, o aplicativo é muito utilizado para questões de trabalho e é famoso pelos grupos de família, de amigos e, também, de ideologias. O que não tem faltado nesses primeiros dias pós-eleições são casos de mensagens que podem incitar movimentos não democráticos. É isso que está acontecendo em algumas cidades da Serra Gaúcha.
Na semana que antecedeu o segundo turno das eleições de 2022, começaram a circular em grupos de WhatsApp em pelo menos quatro cidades da Serra Gaúcha listas com o objetivo de divulgar estabelecimentos e pessoas físicas que teriam, supostamente, apoiado a candidatura do agora presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Comerciantes e prestadores de serviço de Caxias do Sul, Flores da Cunha, Gramado e Nova Prata estão presenciando seus nomes em listas que chegam carimbadas com as palavras "boicote", "comunistas" e "apoiadores do PT". Além do comércio local, em algumas dessas listas aparecem grandes redes lojistas do Brasil.
Como deixam claro logo no início das mensagens, o intuito do compartilhamento é boicotar os estabelecimentos, ou seja, se recusar a comprar, usar ou frequentar algum local como forma de protesto pelo suposto apoio à candidatura de Lula.
Um dos donos de um restaurante citado na lista de Flores da Cunha, que prefere não ser identificado, comenta que não sabe como o seu nome foi parar na mensagem encaminhada, por não se manifestar politicamente de forma aberta. Ele conta que foi ameaçado após tentar conversar com uma das pessoas que estavam compartilhando a lista, mas que, no momento, não se sente ameaçado.
— O homem falou para mim: "se precisar vou aí te surrar".
"Não foi só puxar um boicote, foi agressão"
No caso de Flores, cidade onde o candidato Jair Bolsonaro fez 82% dos votos válidos no segundo turno, isto é, quatro em cada cinco, algumas das pessoas que foram citadas ou tiveram seus estabelecimentos citados na lista abriram um boletim de ocorrência coletivo na Polícia Civil sobre o caso. A ideia, agora, é entrar com uma ação judicial contra danos morais, conta o empresário dono de restaurante.
Em Caxias do Sul, uma lista também começou a circular nos grupos de WhatsApp após o segundo turno das eleições, com 47 estabelecimentos citados. Ao final da mensagem os criadores escrevem "Fizeram o "L" do Ladrão... Não merecem o dinheiro dos conservadores."
A dona de um dos estabelecimentos de Caxias que está na lista, que também prefere não ser identificada, conta que não é a primeira vez que tentam boicotar o restaurante por um posicionamento político. Ela relata que algo parecido ocorreu ainda neste ano, após uma publicação dela nas redes sociais. Na ocasião, a empreendedora admite ter se sentido ameaçada após receber mensagens via Messenger.
— Recebi mensagens do tipo: "tu e a tua família nem deveriam existir", além de outras ofensas. Eu fui lendo aquilo, chorando e ficando nervosa. Foi bem violento, não foi só puxar um boicote, foi agressão a mim e a minha família. Na época, eu não consegui sair da cama por três dias. Eu acho uma violência tão grande, mas vamos ter que atravessar esse momento novamente.
O dono de outro comércio de Caxias do Sul, que também está na lista e prefere não ser identificado, afirma que sempre teve um posicionamento político e nunca o escondeu, mas fica triste pelas atitudes que estão sendo tomadas neste momento.
— A ignorância está à solta. É uma ignorância política. Eu tenho a minha posição. Eu tenho o meu time de futebol, por exemplo, eu perco e fico triste, claro, mas a vida continua. Eu acho que estamos tomando um caminho nebuloso. Eu penso nas pessoas, nos menos favorecidos, essa é a minha postura. Eu me sinto magoado pela falta de compreensão das pessoas com os menos favorecidos — relata o empresário, emocionado.
Ele conta que, nesta semana, a loja recebeu uma ligação de uma pessoa que não quis se identificar, incentivando o boicote. O anônimo afirmou que seria presidente de um bairro nobre de Caxias e que iria pedir para que todos na região parassem de frequentar o ponto de comércio.
— Afora isso, tivemos alguns clientes que são bolsonaristas e falaram que não têm nada contra nós. É questão de respeito e educação — finaliza.
A circulação das listas em cada cidade, repercussão e consequências. A reportagem procurou repercutir as listas com representantes de entidades empresariais, uma vez que o boicote é direcionado a empresas, bem como a prestadores de serviços.
Caxias do Sul
A lista começou a circular na semana pós-segundo turno das eleições. Quando recebida pela reportagem, a relação contava com 46 estabelecimentos. Alguns dos comércios e restaurantes citados já têm conhecimento da mensagem.
Manifestação da Câmara de Indústria, Comércio e Serviços (CIC) de Caxias do Sul
"Eu não sabia da lista, mas precisamos apaziguar as coisas. Posições políticas cada um tem a sua e, dentro de uma democracia, precisa respeitar. Eu, enquanto eleitor, tenho um lado e quero ter o respeito do outro, assim como o outro tem que ter o meu respeito. Dentro das regras, vamos debater, construir ideias. Independente de lista ou não, vamos produzir. Paz e tranquilidade para trabalhar, com respeito mútuo e bola para frente."
— Celestino Loro, presidente da CIC Caxias do Sul
Flores da Cunha
A listagem de Flores da Cunha já é conhecida pela Polícia Civil, pois alguns dos citados fizeram um boletim de ocorrência coletivo na delegacia. Agora, a ideia de um dos cidadãos é entrar com uma ação judicial contra danos morais.
A reportagem entrou em contato com o Centro Empresarial de Flores da Cunha, que optou por não se manifestar sobre o caso.
Gramado e Canela
Na Região das Hortênsias, estabelecimentos e prestadores de serviços de Gramado e Canela foram alvo de outra lista. Ela circulou em grupos de WhatsApp e no Instagram.
Manifestação do Sindicato da Hotelaria, Restaurantes, Bares, Parques, Museus e Similares da Região das Hortênsias (Sindtur)
"Não estou a par dessa lista. Eu sou bolsonarista, votei, mas agora não existe boicote, cada um tem o direito de se expressar da forma que quiser. Sou totalmente contra qualquer tipo de boicote. Existe a preocupação (com os efeitos) em qualquer tipo de segregação que se faça. Esse boicote não é algo que a gente concorda e jamais permitiremos que isso se perpetue aqui. A gente não vai concordar com nenhum tipo de retaliação fascista desse tipo. Agora, temos que aparar as arestas e trabalhar. É o nosso pensamento aqui. Se isolar do mundo ou isolar alguém é a pior forma de se manifestar."
— Claudio Souza, presidente do Sindtur
Nova Prata
Em Nova Prata, a lista já circulava na semana que antecedia o segundo turno das eleições, com 33 estabelecimentos e profissionais citados. Na introdução, os autores escreveram: "Deus não une pessoas, Ele une propósitos, princípios e valores sagrados. Vamos boicotar os comunistas de Nova Prata."
A Federação Brasil da Esperança (PT, PCdoB e PV) fez uma representação ao Ministério Público local sobre a lista divulgada. Em razão de o fato circular na internet, o caso foi encaminhado ao Ministério Público Federal (MPF), com atuação perante o Tribunal Regional Eleitoral (TRE). O caso, agora, aguarda análise e manifestação da Procuradoria-Geral Eleitoral, em Brasília.
A reportagem pediu uma manifestação da Câmara Cultural da Indústria, Comércio e Serviços (CIC) de Nova Prata, porém a entidade preferiu não se manifestar por entender que envolveria mais a Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL). A CDL de Nova Prata afirmou não ter conhecimento do assunto.
Por que os boicotes e ameaças
As listas pedindo o boicote aos estabelecimentos e até a pessoas físicas prestadoras de serviço representam uma divisão nas comunidades, o que não era visto anteriormente nas eleições, que devem ser vistas como um episódio habitual da democracia. Para tentar entender essas ações e quais podem ser seus impactos, a reportagem ouviu especialistas ligados à neurociência, psicologia, ciências políticas e economia.
"O fanatismo pode causar distorções nas lojas"
"Nós temos que considerar que qualquer tentativa de boicote, qualquer tentativa do que não seja natural no mercado, como boicote ou qualquer coisa, sempre vai causar uma distorção no mercado, principalmente nas lojas. O natural é os consumidores encontrarem os estabelecimentos em função da qualidade dos seus serviços, dos seus produtos e do preço que é ofertado. Uma grande rede está sofrendo com essa situação. Há quatro anos, ela se posicionou contra Bolsonaro. O principal problema foi que ela teve uma queda de vendas, uma perda de lucratividade e afetou as ações dela. Isso em âmbito nacional. Mas, lógico, pode ocorrer até no município, nessa forma de causar distorções. Então, sim, se essas listas começarem a ganhar corpo, o fanatismo das pessoas pode causar distorções nas lojas locais. Sem dúvida nenhuma, isso pode acontecer. Mas, como citei, o negócio é o seguinte: se você tiver bons produtos e o preço atrativo, isso é uma questão chave na economia. O preço reflete se você é eficiente, se você é produtivo, se tem custos baixos, se opera com escala de produção, de compras e vendas. Tudo isso vai se refletir no preço e, em tempos difíceis, o que interessa é você comprar com o melhor preço para espichar o salário. Eu acredito que a lista, a revolta, isso ao longo dos meses vai pacificar. Acredito que isso tenha um tempo. É, como terminou a partida de futebol, meu time não ganhou, mas depois tu diz: 'Isso acontece'".
- Mosár Leandro Ness, economista
"O 'eles' representa uma ameaça"
"Consigo identificar três fatores: primeiro, seres humanos adoram entender o universo de forma binária ou dicotômica. Tem um pouco a ver com o nosso processo de evolução, de seleção natural e das coisas que encontramos, como dia e noite, homem e mulher, como claro e escuro, o perigoso e o seguro. Na dúvida, é muito intuitivo para as pessoas pensarem de maneira binária ou dicotômica, com uma série de consequências. Uma delas é essa divisão de direita e esquerda.
O segundo também é de origem evolutiva - na verdade todos são. Nós evoluímos como espécie em pequenos grupos. Tínhamos a tribo como nossa estrutura social, qualquer coisa entre cinco e 30 indivíduos, não muito maior do que isso. Você tem uma dicotomia. Então, tem o nós que somos os membros da tribo e eles, que são os outros. Na dúvida, em termos evolutivos, o "eles" representa uma ameaça. Então, existe uma coisa de identificação, entre quem é do bem, como se gosta de simploriamente dizer, e os outros são potenciais agressores, ameaças e tudo mais. Isso leva à polarização. Então, tu partes dessa coisa dicotômica e tu chegas nessa coisa de identificação por grupo. Vemos isso em torcidas de futebol. Então, tem isso de esquerda e direita.
E aí, tu tens o terceiro fator, que é bem mais abstrato. É a necessidade humana de encontrar coerência interna na sua visão de mundo. Humanos foram selecionados resolvendo problemas, encontrando os furos, certo? Tudo aquilo que encaixa em como a pessoa enxerga o mundo é como um, 'ok, tem a coerência interna, então isso encaixa e vou aceitar'. Tudo aquilo que vai contra, ou que é um furo ou é diferente do esperado, é um problema e eu vou rejeitar. A consequência de buscar a coerência interna, que é o que em psicologia cognitiva chamamos de viés de confirmação. Se vem uma notícia que confirma o que você acredita, você absorve essa notícia, você incorpora ela porque confirma essa coerência interna. Se vem algo que contesta, você ignora e despreza, porque é do outro. Então, você pega esse caldo com essa visão dicotômica, essa necessidade de formar grupos, ter uma visão que tenha consistência interna, e aí tu tem um terreno muito fértil para criar essas realidades alternativas, que é o que vemos associado, seja a fake news ou pós-verdade, em que você começa a trazer informações que não são baseadas na realidade, mas que encaixam no que aquele grupo espera ouvir."
— Lucas Oliveira, doutor em neurociências
"Faz com que o abismo se consolide"
"A primeira coisa é que temos dois candidatos e duas propostas completamente diferentes. Talvez a eleição mais polarizada que tivemos nos últimos tempos. Candidatos com discursos, propostas e até com ideais muito diferentes. O que vejo acontecendo nessa realidade que se instaurou, primeiro é um discurso de ódio, a gente verifica até nos debates que são poucas propostas e muitos ataques uns aos outros. Isso faz com que esse abismo se consolide ainda mais. Alguns acham que paixão e ódio são sentimentos distintos, mas eles são muito próximos porque, quanto mais eu me apaixono por uma ideia, mais eu vou sentir ódio por tudo aquilo que vai contra essa minha ideia.
O comércio se posicionou e as pessoas parece que se veem obrigadas a tomar um lado ou um partido, que acaba não se restringindo só ao voto que elas deram no sigilo da sua escolha. Acaba sendo uma polarização entre o bem e o mal, onde acreditam que estão combatendo o mal com o seu voto, ou que estão fazendo o bem com seu voto e vice-versa. Dois lados muito polarizados.
Então, esse sentimento, essas emoções tão extremas que os dois candidatos opostos geram acabam repercutindo nesse sentido, de achar que tem esse dever de boicotar aquele que não pensa como eu, porque ele faz parte do mal. Eu preciso combater não só o inimigo, que é aquele candidato que eu não concordo, mas tenho que combater o mal na sociedade, no comércio. Acredito que seja por aí a linha de raciocínio".
— Marina Zuccolotto, psicóloga
"Trabalhar para pacificar o país"
"Nós tivemos uma eleição em que o país inteiro ficou dividido. Só isso é um fator de desestabilização e divisão das opiniões. Então, os números do resultado da eleição mostram uma divisão muito profunda do país. Agora, terminada a eleição, a continuidade de atos de represália, que parece ser o caso, já me parece ser algo que cria uma situação de instabilidade muito mais séria ainda, porque, terminada a eleição, é de se esperar em um reduto democrático que as coisas se acalmem, que o resultado da eleição seja aceito, e que isso não incentive esses movimentos de represália.
Parece ser uma espécie de vingança com quem parece não ter concordado com uma orientação. Parece ser uma coisa destrutiva, que não deveria estar acontecendo. Todos nós no Brasil deveríamos pensar em como atenuar esses conflitos e essas oposições. E não continuar a alimentá-las, nem fomentar uma radicalização de posições que vão se estendendo para a esfera privada, que são relações e reações que estão na esfera privada dos empresários e também de pessoas que trabalham ali e começam a radicalizar e transferir do debate que é especificamente político para comportamentos na esfera privada. Vai criando uma situação de tensão muito perigosa, na verdade. Deveríamos trabalhar para pacificar o país e não para extremar as pessoas em função de posição e opinião. É algo muito destrutivo, temos que pensar em manter o nosso país num mínimo de cordialidade e a capacidade de conviver com as pessoas que pensam diferente".
— João Carlos Brum Torres, doutor em Ciências Humanas e professor de Filosofia
Palestra cancelada em São Marcos
Um ato semelhante ao das listas foi presenciado em São Marcos esta semana. Na quinta-feira, a prefeitura local anunciou o cancelamento da palestra com o escritor, poeta e empreendedor Bráulio Bessa depois que ameaças contra o palestrante foram feitas. Vídeos que circulam nas redes sociais mostram apoiadores de Jair Bolsonaro, durante manifestação na quarta-feira (2/11) na BR-116, criticando a escolha do palestrante por conta da posição política de Bessa, que anunciou voto em Lula nas redes sociais, e convocando protesto contra o evento.
— Para mim, é manifestação da mesma coisa. Você identifica aquela figura, seja o Seu Jorge ou seja a tendência política desse poeta, ele passa a ser rechaçado porque ele é do outro, e não da tribo da qual essas pessoas pertencem. E aí, as pessoas revelam o que elas pensam. Nós vemos todo o horror que foram as ofensas racistas e profundamente discriminatórias no show do Seu Jorge, mas vemos o que está por trás. O próprio preconceito, seja de uma etnia diferente ou uma orientação ou identidade sexual diferente, também está associado a isso — explica Lucas Oliveira.
Em nota, a prefeitura justificou o cancelamento com o objetivo de " assegurar a ordem pública e a segurança do palestrante e da população que iria comparecer ao evento". A palestra seria realizada na terça-feira (8) e seria aberta a comunidade, com entrada gratuita.
— Comportamentos desse tipo em que os titulares do governo continuam a tomar decisões de radicalismo, é algo ruim para o Brasil. E na comunidade local, em espaços sociais mais reduzidos, como uma cidade do interior, radicalizar ainda mais cria uma situação de tensão muito grande porque as pessoas estão muito perto, se conhecem umas às outras. Eu acho que aí os riscos são maiores, de ter conflitos, brigas e discussões. Eu acho que deveria procurar agir na direção contrária, deixar um pouco para trás isso. As diferenças políticas são legítimas, mas ficar aguçando isso e transferindo para retaliações individuais, eu acho que é muito destrutivo e que a gente deve combater — analisa Torres.